Violência no espaço urbano é debatida por ativista social e pesquisadores do Brasil e da Argentina
Uma discussão efetiva sobre a relação entre violência e espaço urbano precisa reconhecer o genocídio do povo negro em curso no Brasil, defendeu Hamilton Borges, fundador, na Bahia, do movimento Reaja ou será morto, reaja ou será morta!, em relato contundente feito durante mesa-redonda realizada no auditório da Faculdade de Ciências Econômicas (Face), campus Pampulha, na manhã desta quinta-feira, 6. A atividade, mediada pela professora Priscila Carlos Brandão, do Departamento de História da Fafich, integra programação da Conferência internacional sul-americana: territorialidades e humanidades, que ocorre deste a terça-feira, 4, na UFMG.
“Para esse debate, é importante que os mortos falem. Que saiam dos dados apresentados em tabelas e falem por meio de nós”, afirmou Hamilton Borges. Segundo ele, [foto ao lado], também é preciso considerar “a ausência da pessoa preta, como sujeito cultural e político, dos espaços de construção de saber e de poder”, como os ambientes universitários.
“A contradição principal do Brasil é o racismo. Existe um ódio contra nós, pessoas pretas, que se manifesta inclusive nos espaços de construção do saber. Falo isso sem qualquer perspectiva de vitimismo, que coloca o outro como responsável por resolver nossos problemas. No entanto, o racismo é real e precisamos vencê-lo”, defendeu.
Ainda de acordo com Hamilton, a presença do negro no país, mesmo nas universidades, ainda é definida pela escravidão. “A escravidão ainda nos define, nos assola. Ou seja, você precisa ser um bom escravo, uma boa escrava, precisa ser uma pessoa que não crie qualquer tipo de conflito no espaço em que está. Mas nós estamos mergulhados e mergulhadas em conflitos”, sentenciou.
Hamilton Borges também teceu críticas à ideia de construção de conhecimento da academia, fortemente baseada em perspectivas europeias. “Ontem mesmo vimos pessoas aqui se referindo, o tempo todo, a Aristóteles, à Grécia, como modelos, como o próprio suprassumo, como embrionários de qualquer ideia de conhecimento”, criticou.
“Mas, antes deles, pretos e pretas investigaram as estrelas, criaram as incisões cesarianas para evitar as mortes nos partos, inventaram a matemática, a antropologia e a escrita. É importante que nós saibamos disso e é importante que essa academia incorpore esses saberes, assim como incorpore os saberes populares que estão aí à nossa disposição”, completou.
De acordo com Hamilton, propor essas discussões em uma mesa sobre a violência urbana é necessário para demonstrar que “os homens pretos e as mulheres pretas querem contar a sua própria história. Nós queremos tratar os nossos dilemas com a nossa presença física, a nossa presença histórica e a nossa presença real. Se estamos falando de Humanidades, para o negro o que há é uma humanidade de segunda categoria. Quando nos olham, olham um negro”, pontuou.
“É preciso que as Humanidades denunciem de forma contundente o massacre cotidiano que nós, pretos e pretas, sofremos no Brasil, por carregarmos uma marca e sermos um povo. Os relatos de morte que nós ouvimos de quem vive na vida real são extremos. Nós não conseguimos fazer uma conta da diminuição da nossa desgraça com os projetos políticos”, reivindicou Hamilton.
Vida urbana e violência
Em suas abordagens, os professores Sérgio Adorno, da USP, e Bráulio Figueiredo Alves da Silva, do Departamento de Sociologia da Fafich, reconheceram que jovens negros, com idade de 20 a 25 anos, são as maiores alvos de homicídios nas cidades de São Paulo e Belo Horizonte. Bráulio Figueiredo, que é membro do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp), destacou que a média global de homicídios no país, que
é de 30 para cada 100 mil pessoas, sobe para 50 quando se olha especificamente para o jovem negro.
Em 2014, segundo Bráulio Silva, cerca de 56 mil pessoas foram assassinadas no país, número que corresponde a 12% do total de mortes por homicídio no mundo. “Se considerarmos apenas 25 cidades brasileiras, teremos 4% dos assassinatos em todo o mundo, o que mostra uma concentração da violência nas metrópoles”, destacou.
De acordo com Bráulio Figueiredo, o aumento da violência está associado ao crescimento das grandes cidades e que carrega um efeito de “contaminação e contágio criminal” de suas regiões metropolitanas. “Em cidades como Belo Horizonte, é possível notar que, quando os dados de criminalidade sobem, também crescem nas cidades da região metropolitana. Por outro lado, quando as taxas diminuem na capital, os índices nos municípios do entorno também caem”, contextualizou.
Bráulio Silva e Sérgio Adorno elegeram como desafios para uma avaliação mais assertiva da violência urbana a inexistência de uma série histórica de dados e índices de crimes violentos nas principais cidades do Brasil. Para os dois, esse fator dificulta uma análise global do quadro de violência no país. “É crucial compreender padrões e tendências da criminalidade nas principais cidades para estabelecermos linhas de análise, com o objetivo de propor reflexões”, defendeu o professor da UFMG.
Ótica da diversidade
Adorno [foto ao lado]defende ainda que é preciso pensar a cidade “pela ótica da diversidade”. Segundo o professor da USP, a relação entre cidades e violência não é um tema recente e já figurava em literaturas dos séculos 18 e 19, quando a presença de crianças nas ruas, da prostituição e do crime começaram a incomodar. “Naquela época, a presença do pobre nas ruas já começava a se constituir, para o opinião pública, em problema social. Esse imaginário que associa ordem, cidade e progresso, também presente no Brasil, não é recente”, afirmou.
Ainda de acordo com Adorno, no início do século 20, começaram a se fortalecer, em todo o mundo, movimentos que defendiam o enrijecimento das leis e da repressão como formas de conter a violência no espaço urbano. “Por outro lado, surgiram também grupos que defendiam um choque civilizatório, uma reforma da sociedade por meio da educação”, destacou.
“Contemporaneamente, muitos têm defendido que o problema da violência está ligado à desigualdade social, propondo o investimento em políticas sociais como o caminho para uma sociedade mais segura, em contraposição àqueles que ainda defendem o viés da lei e da ordem, amparado na repressão”, pontuou.
Na Argentina
O professor Marcelo Sain, da Universidade Nacional de Quilmes (Argentina), destacou que há semelhanças entre o quadro apresentado pelos pesquisadores brasileiros sobre Belo Horizonte e São Paulo. De acordo com Sain, a violência em cidades argentinas como Buenos Aires está diretamente ligada à fragmentação e à segregação urbanas. “Há enorme sensação de insegurança em contextos bastante localizados”, explicou.
Marcelo Sain ainda relaciona a violência no país sul-americano à alta concentração de pessoas e à elevada densidade populacional no espaço urbano e à marginalização socioeconômica e infraestrutural por que passam os moradores das periferias em cidades que experimentam alto desenvolvimento econômico. “No entanto, a violência no espaço urbano na Argentina só se torna escândalo público quando atinge as classes média e alta”, destacou.
Segundo o professor, tanto a população quanto o atual governo argentino enxergam a solução do problema da violência por um viés “policialista”, focado em investimentos financeiros na polícia, que ignora a necessidade de uma reforma na própria instituição. “Tanto o governo anterior, do qual fiz parte, quanto o atual, liderado pelo presidente Macri, seguem essa agenda. No entanto, com o atual governo, de direita, tem havido um endurecimento dessa abordagem. Há muita semelhança entre os governos de Macri, na Argentina, e de Temer, no Brasil. A principal diferença é que o governo argentino é legítimo”, sentenciou.
A Conferência internacional sul-americana: territorialidades e humanidades termina nesta sexta-feira, 7. A programação pode ser consultada no site do evento. Promovida em parceria com a Unesco e a Fapemig, a iniciativa, que integra as comemorações dos 90 anos da UFMG, é preparatória para a Conferência mundial das Humanidades, que será realizada em Liège, na Bélgica, em 2017.