‘Desflorestamento para expansão da cultura da soja se deslocou da Amazônia para outros ecossistemas’, alerta referência mundial da ecologia política
Susanna Hecht, professora de planejamento urbano da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) e especializada em América Latina e Amazônia, está na UFMG participando da Conferência internacional sul-americana: territorialidades e humanidades, evento co-organizado pela UFMG, pela Unesco, por meio de seu Conselho Internacional para Filosofia e Ciências Humanas e pela Fapemig.
Em entrevista concedida ao Portal UFMG, Susanna delimita a atuação da pesquisa no âmbito da ecologia política, lembra a descoberta do modo de produção da famosa “terra preta” amazônica, criada pelos indígenas da região, e valoriza os resultados do controle do desmatamento da Amazônia, que define como "notáveis". Mas alerta: as lavouras de soja têm sido levadas para outros ecossistemas, colocando-os em risco. Confira a seguir:
A senhora realiza pesquisas no âmbito da ecologia política, com foco na América Latina e, em especial, a Amazônia. Em que essas pesquisas consistem? Como podemos definir a ideia de "ecologia política"?
A ecologia política tem como principal questão o modo como as forças políticas e econômicas estruturam e moldam o meio ambiente. Ela é embasada por estudos empíricos, isto é, por medições da natureza e por outros dados socioeconômicos [dados de origem distinta], e busca compreender como as estruturas impulsionam relações e efeitos ambientais.
A unidade de análise é a ideia de paisagem, que diz respeito ao conjunto dos recursos da terra e os seus usos em determinada região. A ecologia política diz respeito ao mundo atual, em que vivemos, e às estruturas e ecologias que o moldaram.
Aqui estamos falando de uma perspectiva abrangente do conceito de ecologia, que diz respeito às relações que os seres vivos ou as comunidades humanas estabelecem entre si e o meio ambiente em que vivem. Nesse sentido, uma perspectiva de justiça social parece atravessar a disciplina da ecologia política...
O termo ecologia política abrange técnicas, abordagens ou comunidades de interesse cujo foco está na busca por um desenvolvimento equitativo, justo e resiliente. Tem havido uma preocupação histórica com as populações marginalizadas, preocupação que remete às origens da ecologia política como crítica aos programas e às consequências da modernização e às suas raízes em movimentos sociais e à preocupação com a justiça social no desenvolvimento. Em razão disso, as questões relativas aos conhecimentos tradicionais seguem sendo aspecto central da ecologia política: ao mesmo tempo em que não nega a importância de sistemas de conhecimento de excelência, ela também toma como parte de seu método os conhecimentos tradicionais e as histórias esquecidas.
Que trabalhos a senhora desenvolve com foco no Brasil?
Eu já trabalhei muito em questões relativas ao Brasil, desde pesquisas da indústria do gado até estudos mais recentes sobre a expansão da soja na América Latina. Eu e um aluno meu, Gustavo Oliveira, acabamos de editar uma edição temática especial do Journal of Peasant Studies [especializado em políticas rurais e de desenvolvimento], que lança olhar para essas dinâmicas. Também trabalhei com os sistemas de manutenção de solo dos indígenas Kayapó durante a década de 1980.
Nessa pesquisa, a senhora investigou a chamada "terra preta" produzida pelos indígenas da Amazônia...
Foi nessa ocasião que um colega (já falecido) e eu descobrimos o método por meio do qual a terra preta dos índios foi produzida: fogos muito brandos, capazes de gerar um tipo diferente de carbono no solo, comparados aos fogos intensos que são normalmente imaginados. Esse processo resulta na forma durável do carbono que dá origem à terra preta dos índios.
Evidentemente, essa é uma importante forma de conhecimento nativo de agricultura sustentável nos trópicos. Ela é encontrada em toda a bacia e até mesmo na América Central e deve ser compreendida como uma das principais técnicas agrícolas que permitiram que grandes populações povoassem a Amazônia. Se os terraços são um meio de contornar dificuldades em terrenos montanhosos, a terra preta é uma tecnologia nativa de manutenção de solo que ajuda a contornar a limitação de nutrientes da maior parte dos solos tropicais.
Que publicações a senhora indica para quem deseja iniciar um contato com suas pesquisas sobre a Amazônia?
Em meus livros The scramble for the Amazon and the "lost paradise" of Euclides da Cunha e The fate of the forest: developers, destroyers and defenders of the Amazon, abordo especificamente a Amazônia, mas outros, como The social lives of forests: past, present, and future of woodland resurgence, também contam com bastante conteúdo relacionado à região: tratam de história ambiental, conhecimento indígena, assentamentos nativos, migração contemporânea e os usos de recursos amazônicos na urbanização. É um material que abrange bem a história da Amazônia e as dinâmicas mais recentes de recuperação florestal e prevenção de desflorestamento.
Na Conferência internacional sul-americana: territorialidades e humanidades, muito se tem falado em transdisciplinaridade. Quais metodologias a senhora usa em suas pesquisas?
Sou muito heterodoxa em meus métodos, uso tudo que está ao meu alcance – solos, satélites, literatura, história e estatísticas. Também me valho largamente do trabalho de campo e de entrevistas.
Qual é a realidade atual do desmatamento no Brasil e no mundo?
Eu tenho trabalhado questões florestais desde o início de minha carreira. O que vemos agora são dinâmicas complexas de recuperação florestal em muitas áreas e por muitos motivos, mas também vemos vários casos em que se evita o desflorestamento e o avanço de culturas agrícolas. As florestas são dinâmicas, e o que é muito importante agora, tendo em vista as macropolíticas em vigor e os problemas de mudança climática, é a continuidade do notável controle do desflorestamento da Amazônia continue. Desde 2004, houve uma diminuição de 80%. A prevenção do desflorestamento equivale a tirar de circulação todos os carros das estradas dos Estados Unidos por três anos. Isso é muito significativo. Mas o desflorestamento para expansão da cultura da soja agora se deslocou para outros ecossistemas, como a caatinga, o chaco, de modo que não é um simples triunfo. É um processo multiescalar, e a escala da Amazônia é a escala da história.
* Uma reportagem aprofundada sobre as pesquisas de Susanna Hecht, baseada no livro The scramble for the Amazon and the "lost paradise", of Euclides da Cunha, pode ser lida no site da revista Planeta Sustentável, acessível por meio deste link.
** A Conferência internacional sul-americana: territorialidades e humanidades integra as comemorações dos 90 anos da UFMG e constitui atividade preparatória da Conferência mundial das humanidades, que será realizada em Liège, Bélgica, em 2017, pela Unesco.