Fernanda Goulart lança livro sobre a versão popular do Art Déco belo-horizontino
Professora da Belas Artes também produziu caixa experimental de obra gráfica que confere materialidade a características do estilo
Neste sábado, 26, a partir das 10h, a professora da Escola de Belas Artes Fernanda Goulart lança dois livros de artista em Belo Horizonte: Beagá Decô: patrimônio gráfico da cidade ao papel e A cidade e sua lírica geometria decorativa. Os livros são resultado da última grande pesquisa realizada por ela com foco no mapeamento de especificidades da arquitetura belo-horizontina, o seu principal campo de interesse científico. Nessa pesquisa, ela esquadrinhou as manifestações populares que o Art Déco produziu na arquitetura da capital mineira ao longo do século 20.
Composto num formato mais acessível (em termos de conteúdo e também financeiros) e voltado para o público amplo, o primeiro livro busca democratizar os achados da pesquisa. O segundo, concebido nos padrões de uma “obra gráfica”, foca em uma divulgação mais experimental do trabalho. A despeito dessa distinção, ambos podem ser considerados livros de artista, esteticamente falando, se for levado em conta o fato de que mobilizam diversos recursos gráficos criativos em suas construções, como fotos, cores, formas, materiais, imagens e fontes tipográficas diversas.
Em certa medida, essas obras dão sequência e fazem avançar o instigante conhecimento sobre a arquitetura de Belo Horizonte que Fernanda Goulart começou a estabelecer em seu primeiro livro, Urbano ornamento: inventário de grades ornamentais em Belo Horizonte (e outras belezas). Lançada em 2014, a obra é a versão em livro da sua tese de doutorado, defendida naquele mesmo ano no Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo (NPGAU) da UFMG.
As duas novas obras, fruto de oito anos de pesquisa, reportam as investigações de Fernanda Goulart que deram sequência àquele primeiro grande trabalho; iniciada em 2015, essa nova pesquisa, focada no Art Déco, culminou em uma residência de pós-doutorado realizada pela professora, em 2022, no Centro de Artes, Design e Moda (Ceart) da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) e no Programa de Pós-graduação em Design (PPGDesign) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
De tiragem artesanal, a obra gráfica A cidade e sua lírica geometria decorativa está disposta em uma caixa lúdica e interativa, com impressos e experimentações que dissecam a visualidade Déco. “A obra constitui-se como laboratório que dá a ver as fachadas em sua complexidade sígnica, a partir da transfiguração de suas composições originais”, informa-se em seu material de divulgação.
O volume Beagá Decô: patrimônio gráfico da cidade ao papel, voltado para um consumo mais tradicional, é formado por dez plaquetes, agrupadas em uma cinta. Elas trazem textos da pesquisadora, entrevistas com moradores e comerciantes que ocupam hoje os imóveis mapeados, artigos de pesquisadoras parceiras e inventários cromáticos, desenhos vetoriais, amostras de contornos geométricos, entre outros conteúdos.
O lançamento das obras ocorrerá no Mercado da Lagoinha, que fica na Avenida Presidente Antônio Carlos, 821, no bairro homônimo. A escolha do local não é aleatória: recentemente revitalizado e candidato a tombamento, o prédio que abriga o equipamento público é um exemplar típico da arquitetura plural, ao mesmo tempo sofisticada e popular, produzida em Belo Horizonte em meados do século 20, da qual o Art Déco é uma das mais expressivas manifestações. De fato, em sua fachada lateral, voltada para a Rua Formiga, o Mercado da Lagoinha é também “um decosão”, como brinca a pesquisadora. A fachada principal, de frente para a Avenida Antônio Carlos, talvez construída em momento distinto, foge ao estilo.
Achados de uma ‘cartografia afetiva’
Em sua pesquisa, Fernanda buscou enfatizar prioritariamente a arquitetura belo-horizontina não tombada, dita popular, em detrimento do Art Déco oficial e imponente mais conhecido e legitimado na história da capital mineira. Nesse sentido, em vez dos edifícios clássicos, já canônicos em nossa memória coletiva (como o prédio do Cine Brasil, no Centro, ou o do Minas Tênis Clube, no Lourdes), ela foi atrás de residências e comércios de anônimos – construções singelas, que melhor encenam uma domesticação à mineira do Art Déco europeu. Dessa estratégia nasceu o nome do projeto, com seu jeito afetivo e abrasileirado de reacentuar o estilo “Decô”.
Para compor seu livro, Fernanda inventariou cerca de 700 casas situadas ao longo do eixo leste-oeste de Belo Horizonte, em inúmeras caminhadas realizadas por ali ao longo de 2017 e 2018, deriva a que ela costuma se referir como uma “cartografia afetiva”. Por serem os que ainda reúnem quantidade significativa de casarios construídos sob a linguagem Déco, 15 bairros acabaram sendo privilegiados nessa inventariação. Na regional onde nasce o Sol, foram Horto, Santa Efigênia, Santa Tereza, Sagrada Família e Floresta. Na região mais central da cidade, o próprio Centro e três bairros da regional Nordeste: Colégio Batista, Concórdia, Bairro da Graça. Por fim, na direção do poente, ela percorreu Lagoinha, Santo André, Bonfim, Carlos Prates, Padre Eustáquio e Calafate.
Do Art Déco europeu ao “Decô” mineiro
Mas o que define esse estilo de artes visuais, arquitetura e design no que diz respeito à sua particular aparição feita na arquitetura belo-horizontina popular do pós-1930? Fernanda responde: o recurso ao ornamento, às geometrias em relevo, aos estilemas abstratos, entre outros aspectos que ela vai dando a ver nas plaquetes que compõem seu livro. “Diferentemente do Art Déco consolidado como estilo mundo afora – com alinhamento vertical e austero, ferros dourados, revestimentos em mármore e pó de pedra, figuras humanas e vegetação estilizadas etc. –, neste outro ‘Decô’, chamado popular, predomina um conjunto modesto e singelo de linhas predominantemente horizontais que com as verticais se alternam e se distribuem paralela e ortogonalmente, criando composições dinâmicas, desiguais e coloridas a cal ou látex”, descreve a pesquisadora.
“Associados a essas linhas, losangos, círculos, triângulos, retângulos e ziguezagues estão distribuídos nas platibandas e fachadas de modo cadenciado e não necessariamente simétrico (como o cânone clássico muitas vezes ditava ao estilo). Decoradas em "estilo moderno" – expressão utilizada no período em que foram construídas –, essas casas são testemunhas vivas de uma fascinante e sutil inventividade popular, ainda que esse atributo seja de laboriosa comprovação e ainda mais custosa definição”, ela anota. Platibandas, cumpre registrar, são aquelas muretas instaladas no topo das paredes externas das construções para proteger e ornamentar suas fachadas.
Os estilemas Decô, acrescenta Fernanda Goulart, eram obras sobretudo dos chamados “práticos”, isto é, mestres de obras ou mesmo pedreiros, profissionais que executavam desenhos não necessariamente concebidos originalmente como projetos. “O que está posto e construído é um vocabulário ínfimo, essencial, ritmado e concretizado por uma gramática infinitamente desdobrável. São, de todo modo e sobretudo, apropriações concebidas por pessoas quase sempre anônimas [...] que assimilaram a cultura visual à época em voga e deixaram como legado uma simplicidade absolutamente inventiva, fruto de uma economia formal, financeira e, sobretudo, moderna.”
Ambos os livros, Beagá Decô: patrimônio gráfico da cidade ao papel e A cidade e sua lírica geometria decorativa, são o resultado do esforço de Fernanda pela salvaguarda da cultura material gráfica e ornamental relativa à arquitetura da capital mineira. Em uma cidade tão dada à sofreguidão moderna e tão congenitamente ansiosa por destruir de pronto tudo o que evoca memória e história, como é o caso de Belo Horizonte, as obras de Fernanda são um modo de se “encontrar maneiras criativas e reflexivas de traduzir a presença ainda – palavra sempre apropriada ao que, apesar de ameaçado, resiste e insiste – marcante do passado na paisagem atual”. Em suma, trata-se de um trabalho não apenas arquitetônico e artístico, mas também memorial-gráfico, histórico, etnográfico, social – e poético.
Livro: Beagá Decô: patrimônio gráfico da cidade ao papel
Autora: Fernanda Goulart
Autoras participantes: Beatriz Magalhães, Michele Arroyo e Yana Tamayo
Edição da autora
Fascículos / R$ 60
Obra gráfica: A cidade e sua lírica geometria decorativa
Autora: Fernanda Goulart
Edição da autora
Caixa / R$ 170