Serra do Curral: uma paisagem ameríndia?
Pense em sujeitos autóctones cujas ações de apropriação do espaço socioambiental eram exemplos de sustentabilidade. Imagine um projeto de sociedade ancestralmente organizado no formato de redes colaborativas em perfeita conexão e alinhamento. Imagine, agora, um povo estranho chegando a essas terras e impondo sua cultura. Imagine os ciclos econômicos forçados, o tipo de trabalho empregado, a tortura e o sofrimento impostos. Assim, formou-se nossa grande dívida histórica com os indígenas, legítimos brasileiros, que estão na base de formação de nossa brasilidade.
A legislação educacional brasileira vem consolidando avanços significativos no que se refere à temática indígena e afrodescendente no contexto da educação básica. A cultura indígena deixa de ser relevante somente por ocasião do dia 19 de abril e passa a ser objeto de interesse das várias escolas municipais da capital mineira, independentemente de datas.
Mas por que a temática dos índios do antigo território ancestral, hoje dominado pela capital mineira, ainda é pouco fundamentada, registrada e socializada? O que a história diz das paisagens culturais ameríndias de Belo Horizonte? A Serra do Curral seria um marco de referência para os povos que aqui existiam antes da chegada dos bandeirantes? É provável que sim, embora haja pouca pesquisa nesse sentido. Curiosamente, quem transita pela área central, perímetro urbano em traçado ortogonal dos tempos da transferência da capital mineira de Ouro Preto para as antigas paisagens rurais do Curral del Rey, no fim do século 19, descobre ruas com nomes indígenas. Poucos, porém, sabem que já existiu um Museu do Índio na cidade, localizado no bairro Cruzeiro, fechado durante a ditadura militar. Comunidades ameríndias do país inteiro emprestam seus nomes para batizar as ruas no sentido leste-oeste do Centro, assim como estações de transferência de passageiros do BRT. Carijós, Tamoios, Tupinambás e outras mais denunciam lembranças de tempos pretéritos, quando populações foram expropriadas de suas paisagens e de suas tradições ancestrais.
Extermínios, descaracterização e aculturação marcam a história de povos ameríndios, subjugados como civilizações primitivas e atrasadas, a quem foram negadas sua historicidade e sua identidade. Nas terras dos Cataguás, não seria diferente com a exploração aurífera empreendida nas Minas Gerais. Em Goiás, o mesmo aconteceria com os Goiases, na região da Serra Dourada, amedrontados pelo bandeirante Anhanguera. Mas o Brasil sabe muito pouco sobre sua essência e sua origem ameríndias. É necessário um resgate cultural, ecológico e antropológico, sobretudo educativo. Hoje, os maiores povos do estado restringem-se aos Krenak, Maxakali, Pataxós e Xakriabá.
"Passado e presente unem-se em prol do futuro: a memória ancestral dos indígenas que subiram e desceram a serra, os escritos literários de Carlos Drummond de Andrade denunciando a mineração, os votos da população que elegeram a serra como sua paisagem querida".
Compreendendo a serra como patrimônio ecológico e cultural, seus moradores, gentil e respeitosamente, solicitam às autoridades que os representam no Executivo, Legislativo e Judiciário que algo emergencial seja feito em prol da sua preservação. Um conjunto de parques municipais e reservas particulares do patrimônio natural tentam salvaguardar a Serra do Curral, ameaçada pela mineração e urbanização desenfreadas. Legalmente protegida por tombamentos federal (1960) e municipal (1990), a serra foi declarada, em votação popular, símbolo da cidade de Belo Horizonte.
Mas o que a paisagem dos indígenas do passado e dos citadinos de hoje demonstra em sua essência? Descaso, degradação, desrespeito. Tal como no passado, com índios e negros, a história dos ciclos econômicos se sobrepõe aos interesses da coletividade. A possível instalação do Complexo Minerário Serra do Taquaril é incompatível com o artigo 225 da Constituição Federal e acabará com o que resta de um inigualável patrimônio mineiro. Em 19 de julho de 1977, o Executivo Estadual, por meio da Lei 7.041, autorizou a criação de uma unidade de conservação de proteção integral nessa região, o que não se efetivou. Em seu lugar, há uma cava minerária denominada Águas Claras, sem tratamento e recuperações obrigatórios em cumprimento às legislações vigentes. Um grande lago de 200 metros eterniza a ameaça e a agressividade das mineradoras e seu desrespeito pelos interesses da civilidade.
Passado e presente unem-se em prol do futuro: a memória ancestral dos indígenas que subiram e desceram a serra, os escritos literários de Carlos Drummond de Andrade denunciando a mineração, os votos da população que elegeram a serra como sua paisagem querida. Como resposta coletiva à mineração degradante, todos se unem em um pedido especial de atenção à criação do Parque Estadual Presidente Wenceslau Brás, que teria lugar entre os municípios de Belo Horizonte, Nova Lima e Sabará. Trata-se de um grande complexo natural formado pela junção do Parque Estadual da Baleia com o Parque das Mangabeiras, a Serra do Curral, o Fort Lauderdale, o Mirante Mangabeiras e as Reservas Particulares do Patrimônio Natural Minas Tênis Clube e Mata do Jambreiro. Um parque que acolha a área degradada da Mineração Lagoa Seca e reabilite seus ecossistemas. Um parque que proteja as matas do Melo e da Vila Elisa em Sabará. Um parque que proteja o remanescente florestal do Vale do Sereno, assim como a Serra do Curral, paisagem ameríndia de um passado de dívidas históricas e que precisa se efetivar como legado não só dos mineiros, mas, sobretudo, dos brasileiros.