As fantasias do Escola sem Partido
Compreender a proposta de lei do programa Escola Sem Partido (PL 7180/14) é compreender a relação entre capital (como educação), Estado (como escola) e direito (como lei). A ideia central da proposta é estabelecer uma “lei contra o abuso da liberdade de ensinar”, usando a Constituição Federativa de 1988, que fala em “liberdade de consciência e de crença de aprender dos alunos”, de “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”, do “pluralismo de ideias” e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, que preconiza “o direito dos pais dos alunos sobre educação religiosa e moral”. A proposta estabelece os chamados “deveres do professor” e tem sido divulgada pelo advogado Miguel Nagib.
Como indica o jurista e filósofo do direito Alysson Mascaro, no livro Crise e golpe (2018), o neoliberalismo no século 21, na América Latina, nos Estados Unidos, na Europa e nos países árabes, avança ao lado de setores sociais conservadores e reacionários, que minam o campo das conquistas progressistas, incluindo inúmeras ações e concepções científicas, filosóficas, culturais e sociais, questões sobre gênero e sexualidade, aborto, feminismo, homossexualidade, transexualidade, meio ambiente e direitos humanos. Todavia, destaca Mascaro, é crítico notar que, embora a Constituição Federativa de 1988 tenha representado um passo importante para a democratização brasileira, há contradição e ambivalência, uma vez que o capitalismo e o conservadorismo ideológico a perpassam. Existem ideologias conservadoras e reacionárias subjacentes ao texto constitucional, um corolário das forças políticas numa época transicional entre ditadura e democracia.
Um dos pontos centrais em Crise e golpe é que o Estado e o direito, quando conduzidos pelos sujeitos sociais, não são isentos de ideologias e subjetividades. Assim, torna-se claro que a interpretação e o uso da lei por advogados, juristas e ministros têm sido ingenuamente vistos pela sociedade como algo jurispositivo, objetivo, imparcial, isento de quaisquer ideologias. Segundo Mascaro, isso nos leva a pôr o sistema jurídico brasileiro (e a própria sociedade brasileira) na berlinda, já que ele tem de lidar, conflituosamente, com os ditames do conservadorismo neoliberal em contraste com as conquistas progressistas. Portanto, há certa ideologia ou subjetividade no direito, e isso influencia a interpretação da lei. Mascaro mostra que o ambiente social no qual o advogado, o jurista e o ministro são preparados, incluindo a forte influência do direito estadunidense na formação de profissionais do direito brasileiro, desempenha papel central nas decisões jurídicas. É notório que o projeto conservador-neoliberal, uma vez comercializado pelas diversas mídias sociais, pode influenciar essas decisões.
Advogados, juristas e ministros, cujas famílias e instituições de formação defendem tendências conservadoras e reacionárias, e que também comercializam o que é vendido pelas mídias, alimentam-se de certas ideologias e subjetividades, as quais implacavelmente perpassam o Estado e o direito. Mascaro também comenta que a crise do capital de 2008 tem reforçado o próprio avanço do capitalismo, agora em sua forma neoliberal conservadora dentro do Estado e do direito – o golpe de 2016 é um exemplo disso. Os resultados das eleições brasileiras de 2018 e seus desdobramentos também refletem esse avanço. Na minha percepção, a proposta do Escola Sem Partido também caminha a par com o projeto conservador-neoliberal, valendo-se da Constituição.
Podemos questionar se a interpretação da Constituição no Escola Sem Partido é de caráter estritamente jurispositivo, imparcial, objetivo, ou se há uma ideologia do sujeito ou subjetividade social por trás. Louis Althusser, em Aparelhos ideológicos de Estado (1985), incluiu religião, moral e família como representantes desses aparelhos. Aqui, sustento que, assim como o direito subjetivo pode minar o direito justapositivo, a ideologia do Escola Sem Partido, apropriando-se das ideias de “pluralismo” e “neutralidade” na Constituição, mas em contexto ironicamente conservador e reacionário, minaria fatos, teorias, metodologias e conceitos científicos, filosóficos, culturais e sociais. A educação instrumental seria dada; a autoridade familiar a administraria; o Estado e o direito a legitimariam. Dessa forma, a educação seria mera mercadoria para consumo-controle; ela não seria concebida como serviço público conectado à complexidade ontológico-epistemológica do viver. Nesse cenário, a escola tornar-se-ia refém das salas de televisão e redes sociais que formam os lares; ela jamais se realizaria como ambiente transformador, complexo e interativo, que promove diálogos, descobertas, reflexões, transformações e realizações. Nessa realidade, como seriam os viveres dos estudantes dos ensinos fundamental e médio? E depois, como graduandos e graduandas, como seriam seus viveres em escolas, centros, colégios, comunidades e universidades? E mais tarde, já profissionais, como seriam seus viveres nesses mesmos ambientes?
O Estado, quando controlado pelo conservadorismo neoliberal, sustenta a ideologia da família, da religião, da moral e da ordem. Esses aparelhos ideológicos, centrais no Escola Sem Partido, perpassariam a escola por meio de uma leitura subjetiva da lei. Isso me faz concluir que o Escola Sem Partido é o partido fantasiado de sem partido, o cinismo, de neutralismo, o dogmatismo, de pluralismo e a coerção, de libertação.