Vida após a redação
O jornalismo vive um momento difícil diante da muralha de desafios que a internet representa. Nacional e internacionalmente, ainda não se chegou a um consenso sobre o modelo de negócio que realmente fará a imprensa tradicional vingar no meio on-line. Com cada vez mais frequência, demissões em massa acontecem nas redações e, além do consequente aumento do desemprego em nossas fileiras, os profissionais que permanecem no mercado acumulam as funções dos que se foram e sofrem com o estresse que se multiplica diante da rapidez com que é preciso trabalhar para manter sites e redes sociais atualizados, na eterna briga pelo furo – agora contada em minutos, quiçá segundos, no novo mundo ciberespacial.
Em razão disso, o jornalista é obrigado a se reinventar e migrar da redação para outras formas de trabalho: marketing, empreendedorismo, comunicação corporativa, entre outras. E não se trata de uma transformação light. A citada reinvenção empreendedora e com foco nas mídias sociais já é complicada por si só – a maioria dos profissionais de redação não tem cultura de empreender ou administrar, tendo-se concentrado na missão jornalística clássica: apurar, escrever e editar matérias. E essa reinvenção para uma realidade focada na audiência e métricas de internet passa por um complicador ainda maior, que é a imersão no mundo corporativo clássico.
O jornalismo é uma profissão curiosa. Lidamos com fatos o dia todo. Sabemos que, quase sempre, um dia será diferente do outro, que tudo pode acontecer. Temos consciência de que é preciso manter o sangue frio mesmo (e principalmente) sob pressão, para garantir a missão de informar bem o leitor. E com a experiência acabamos tomando intimidade com temas os mais diversos, da tecnologia à política. É de se imaginar que, com um perfil desses, marcado por fortíssimo mergulho diário na realidade, estejamos preparados, sempre, para o que der e vier.
No entanto, há uma estranha bolha de irrealidade quando se trabalha numa redação. Só quem já esteve num ambiente como esse pode entender a mistura de tensão e camaradagem que existe lá. Há competição, mas os colegas se ajudam. Mutirões ocorrem o tempo todo nas grandes coberturas. Como se sabe que tudo pode mudar num minuto, vive-se um dia após o outro. Naturalmente, procede-se a planejamentos, mas existe uma informalidade que tudo perpassa e que torna a hierarquia menos aparente em determinados momentos. Os laços que se forjam na labuta de coberturas difíceis são ainda mais solidificados nas mesas de bar, tarde da noite, horário em que muitos enfim deixam o jornal após o fechamento. Não à toa se diz que a profissão de jornalista é extremamente “social”.
Já a hierarquia no mundo corporativo é muito mais rígida do que numa redação; a necessidade de planejamento, apresentações de PowerPoint e planilhas Excel, relatórios e afins é constante. O relacionamento entre equipes e departamentos no ambiente corporativo é diferente da relação entre editorias na redação. É preciso estar “alinhado” com os outros setores para que as coisas andem. E a competição é mais acirrada, ainda que todos (em tese) trabalhem para objetivos comuns.
O ambiente corporativo exige uma disciplina maior em tudo. Não que ela não exista na ralação das redações (claro que está lá, é essencial para obter boas matérias e no processo de fechamento do jornal), mas é diferente. No mundo corporate, há mais disciplina de horário, no sentido nine to five da coisa. A capacidade de se subordinar ou de se adaptar à política interna de cada departamento e saber lidar com as diferentes chefias é essencial, assim como é absolutamente fundamental perceber que se está num ecossistema permeado pela formalidade (não só no trato interpessoal, como nos e-mails e documentos).
Os colegas que já trabalharam em ambientes mais corporativos (assessorias, por exemplo) se adaptam mais rapidamente aos novos tempos. No entanto, quem viveu desde a juventude em redações precisa se ajustar rapidamente e nem sempre encara a tarefa com facilidade. Não é simples como parece, e o fator rotina torna mais complexa a relação com o novo trabalho (afinal, rotina é algo que inexiste no dia a dia de uma redação).
Chega a ser paradoxal que a era da internet exija dos jornalistas a adequação a estruturas mais sisudas de trabalho. Pensando bem, faz sentido de certo modo: a própria internet tirou um pouco do viés boêmio das antigas redações da era industrial e as tornou mais corporativas. Até porque, hoje em dia, passa-se mais tempo dentro das redações e das redes do que na rua, onde todo bom repórter deve estar. O afã de postar tudo antes que a concorrência o faça, além da busca incessante do engajamento nas redes sociais, desencadeou esse fenômeno.
Por falar em busca de engajamento, é preciso lembrar que o prazer de fazer jornalismo é intensamente reduzido quando, em vez (ou além) de dar tratos à bola sobre temas palpitantes para uma boa matéria, é preciso escrever pensando em técnicas de otimização para ferramentas de busca (SEO, na sigla em inglês), isto é, usando palavras e expressões que as pessoas acharão mais facilmente ao fazer uma busca básica no Google. Do mesmo modo, embora seja do jogo da web a tendência a ficar de olho no Google Analytics para garantir a audiência do seu texto ou post, a obsessão pela métrica é inversamente proporcional à inspiração jornalística genuína.