Ela ataca em silêncio
Estudo da Faculdade de Medicina identifica danos cognitivos em jovens com doença falciforme
Doença genética e sistêmica que afeta o sangue e provoca diversas alterações no organismo, como crises de dor e obstrução de vasos sanguíneos, a doença falciforme também pode impactar os processos de aquisição de conhecimento (cognitivos) em razão das alterações no funcionamento do cérebro. Assim, mesmo pessoas que têm a doença e que não registraram episódios de acidente vascular cerebral (AVC) podem sofrer danos nas funções cognitivas e terem prejuízo no desempenho escolar.
Essa é a conclusão central de tese defendida no Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde da Faculdade de Medicina, que avaliou 64 crianças e adolescentes com anemia falciforme – tipo mais comum e grave da doença – sem episódio anterior de AVC. O grupo, formado por indivíduos de 7 a 13 anos diagnosticados pela triagem neonatal em Minas Gerais e atendidos pela Fundação Hemominas, foi comparado com outras 64 pessoas de mesma faixa etária, mas que não são portadoras da doença.
“O grupo de pacientes teve pior desempenho em todas as medidas cognitivas do WISC III (teste de inteligência de referência mundial) quando comparadas ao grupo controle”, informa a psicóloga Isabel Castro, autora do estudo. Os resultados, segundo ela, serão importantes para planejar ações de reabilitação e auxiliar as escolas na oferta de um melhor acompanhamento pedagógico.
Infartos cerebrais silenciosos
Das crianças e adolescentes com doença falciforme, 31% apresentaram ocorrência de infartos cerebrais silenciosos (ICS). Diferentemente do AVC, os ICS, diagnosticados por técnicas de imagem, são assintomáticos.
Segundo Isabel Castro, com base na literatura internacional, a hipótese era de que a capacidade cognitiva dos pacientes com ICS seria menor em comparação com a dos jovens que não apresentam a ocorrência desses infartos. No entanto, a pesquisa revelou que não houve diferença significativa entre as funções cognitivas dos pacientes com e sem ICS. “Observamos que mesmo a pessoa que não sofreu o ICS pode ter perda na conexão cerebral”, afirma a autora do estudo.
Ao comparar os indivíduos dos dois grupos em um mesmo nível socioeconômico, a pesquisa revelou que as crianças e jovens com doença falciforme apresentaram, em média, QI 21 pontos inferior ao da média do grupo controle. “É um resultado assustador, muito pior do que imaginávamos. Ele mostra que é a doença em si que afeta a cognição, embora de forma silenciosa e assintomática”, alerta Isabel.
Políticas públicas
A pesquisadora explica que, em Minas Gerais, o trabalho tem viés inovador devido ao número de crianças e adolescentes com anemia falciforme considerados e ao conjunto dos exames feitos: avaliação psicológica, dados hematológicos e ressonância magnética.
“O projeto busca fortalecer a capacidade técnica e política dos profissionais de educação que trabalham com quem tem doença falciforme”
Para ela, o estudo evidenciou a necessidade de formulação de políticas públicas que melhorem o acesso e a permanência desse público nas escolas, como o projeto Saber para cuidar: doença falciforme na escola, do Centro de Educação e Apoio para Hemoglobinopatias (CEHMOB-MG), fruto de parceria entre a Faculdade de Medicina (Nupad) e a Fundação Hemominas. “O projeto busca fortalecer a capacidade técnica e política dos profissionais de educação que trabalham com quem tem doença falciforme”, informa a psicóloga, coordenadora do projeto.
Em 2017, o Saber para cuidar, em parceria com o MEC, pretende capacitar mais de mil profissionais da rede municipal de Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco e Maranhão – estados com as maiores taxas de incidência da anemia falciforme.
O estudo sugere, também, para implantação imediata, a inserção de protocolo de avaliação psicológica no segmento de crianças com anemia falciforme para auxiliar as condutas médicas, pedagógicas e dos assistentes sociais. “Isso possibilitaria identificar objetivamente os possíveis prejuízos, e as intervenções poderiam ser feitas de modo mais científico”, observa Isabel.
Ainda segundo a pesquisadora, considerando a gravidade da doença e os prejuízos cognitivos, o uso da hidroxiureia, medicamento indicado apenas para pessoas com doença falciforme que apresentam crises de dor intensas e internações recorrentes, deveria ser ministrado a todas as crianças com a doença, a partir dos dois anos de vida. “É imprescindível que estudos clínicos com o uso de hidroxiureia meçam, além dos efeitos clínicos e laboratoriais, a possível influência no desenvolvimento cognitivo dos lactentes com anemia falciforme”, recomenda Isabel Castro.
(Rafaella Arruda - Jornalista do Núcleo de Ações e Pesquisa em Apoio Diagnóstico (Nupad))