Boletim

Nº 1939 - Ano 42 - 09.05.2016

Arquivo Brasil

Ostentar a verdade

Projeto República lança site que reúne documentação inédita sobre a ditadura; parte do material é oriundo dos próprios centros de informações das

Em suas reflexões sobre a mentira na história e na política, a filósofa alemã Hannah Arendt estabelece o conceito de “verdade factual”: a ideia era abordar fatos que, em razão da vasta documentação que os comprova, não estariam mais no campo da opinião; seriam, já, dados históricos (não é concebível, por exemplo, afirmar que foi o Brasil que invadiu e colonizou Portugal). Assim, o contrário de uma verdade factual seria não o equívoco, o erro, a confusão, mas a mentira em estado puro, a falsidade deliberada – não raro, proferida por motivos escusos.

O que Arendt assevera é que, para se combater essas práticas de falsidade deliberada, é necessário ostentar publicamente os dados que embasam as verdades factuais. O objetivo é impedir que a memória dos acontecimentos seja deturpada pela vontade desonesta de quem ocupa posições de poder.

Capa de livro produzido em 1972 por militantes da Ação Popular Marxista-Leninista do Brasil
Capa de livro produzido em 1972 por militantes da Ação Popular Marxista-Leninista do Brasil Projeto Brasil.doc/Cenimar

A UFMG acaba de disponibilizar na internet um site com o objetivo de conferir publicidade a dados que colaboram para a manutenção do saber acerca de uma das principais verdades factuais históricas brasileiras: a violência cometida pelo Estado durante a ditadura civil-militar que vigorou de 1964 a 1985, no Brasil. Trata-se do Brasil.doc, arquivo digital que vai reunir, até o fim de 2017, cerca de 15 mil páginas de documentos referentes ao período, muitos inéditos. Nesta semana, acaba de ser concluída a primeira fase de implantação do repositório, com a oferta de mais de quatro mil documentos para acesso público. 

A documentação reunida refere-se ao período de 1961 a 1988. Grande parte desse material foi gerada pelos serviços de informação e repressão das Forças Armadas – o Centro de Informações da Marinha (Cenimar), o Centro de Informações do Exército (CIE), o Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa), o Serviço Nacional de Informações (SNI) e os Centros de Operação e Defesa Interna (Codi). Os documentos foram obtidos pelo *Projeto República, ­núcleo de pesquisa, documentação e memória vinculado ao Departamento de História da Fafich, responsável pela alimentação e manutenção do site.

O pesquisador Wilkie Buzatti, do Projeto República e coordenador do trabalho, lembra que muitos desses documentos já disponíveis no site são inéditos e representam uma fração muito pequena do montante gerado. “Tivemos acesso a pouco mais de duas mil páginas de documentos oriundos desses centros militares de informações. São microfilmagens dos documentos originais, realizadas no início dos anos 1970. Sabemos e temos como provar que esses microfilmes totalizaram mais de 1,2 milhão de páginas. E há indícios de que o restante desse material esteja em algum lugar”, detalha o pesquisador.

Segundo Buzatti, a expectativa do grupo é, com a divulgação dessa parte do material, despertar, na população e no poder público, o interesse pela localização do restante da documentação. “Com dois mil documentos já será possível promover avanços significativos no conhecimento que temos sobre os fatos ocorridos nesse período. Ficamos imaginando o que não seria possível saber se tivéssemos acesso à totalidade dessa documentação”, especula. “Contudo, o poder público só vai se interessar por procurar esses documentos quando isso for uma vontade da sociedade”, acrescenta. O Brasil.doc será alimentado continuamente, na medida do surgimento de mais informações referentes ao período.

Trecho de instrução para fabricação de artefatos explosivos
Trecho de instrução para fabricação de artefatos explosivos Projeto Brasil.doc/CIE

Outra parte do material que já consta no site foi obtida diretamente por pesquisadores da UFMG no exterior, principalmente no Arquivo de Segurança Nacional do Paraguai. Uma terceira parte, por fim, foi fornecida por grupos, associações e partidos que

atuaram nas diferentes frentes de resistência à ditadura civil-militar brasileira e por indivíduos da sociedade civil, como jornalistas investigativos, que tiveram acesso privilegiado a documentos graças às suas relações com fontes.

Memória em disputa

Os arquivos disponíveis estão organizados em seis grupos. No primeiro, denominado Golpe militar de 1964, estão sendo reunidos panfletos, atas, informes, peças de propaganda, programas, declarações e manifestos relativos ao Exército e a duas organizações que conspiraram para a derrubada do governo do presidente João Goulart: o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), criado em maio de 1959 e vinculado à Agência Central de Informações (CIA) americana, e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), criado em agosto de 1961.

No segundo grupo, Órgãos de informação e repressão da ditadura, estão sendo disponibilizados documentos confidenciais, sigilosos e ultrassecretos sobre órgãos integrantes do sistema de coleta e análise de informações e de execução da repressão no Brasil, como o Cenimar, o CIE, o Cisa, o SNI, os Codi, os DOI, entre outros. Nesse grupo, há, por exemplo, códigos para cifragem e decifragem das comunicações de rádio realizadas em operações militares, o que possibilita saber o que exatamente era comandado em determinadas ações.

No terceiro grupo, denominado Informantes, infiltrados, agentes e centros de repressão, são apresentados informes sobre atribuições de centros clandestinos, relatórios e registros de informantes e de investigações da Marinha que envolviam oficiais. “Os documentos desse grupo oferecem uma visão muito interessante sobre como atuavam os agentes que se infiltravam entre estudantes e guerrilheiros. É possível inclusive saber quem eram eles e como colaboraram para prisões e mortes”, diz Buzatti.

Detalhe de ficha de agente infiltrado em organizações de esquerda
Detalhe de ficha de agente infiltrado em organizações de esquerda Projeto Brasil.doc/Cenimar

No quarto grupo, Censura, estão reunidos relatórios de análise a respeito de suspeita de “atividades subversivas” em produções artísticas e intelectuais. O quinto, Ditadura militar e populações indígenas, abriga o “Relatório Figueiredo”, documento produzido pelo próprio Estado brasileiro (e que ficou desaparecido por 44 anos) sobre os crimes cometidos pela ditadura contra as populações indígenas. Por fim, o sexto grupo, Organizações e movimentos de resistência, concentra documentos relativos ao movimento estudantil, à esquerda armada, à oposição legal, à Igreja, à imprensa e às organizações políticas de oposição.

“A ditadura brasileira ainda é uma memória em disputa”, lembra Buzatti. “Seguimos operando em registros muito ideológicos sobre o assunto”. Talvez por isso, avalia o pesquisador, não é difícil encontrar pessoas dispostas a glorificar e homenagear aqueles que cometeram violações, como a tortura, que a comunidade internacional já considera, de forma pacífica, crime contra a humanidade, portanto imprescritível. “Daí advém a importância de uma documentação como esta ser ostentada na cena pública. Não penso que nós, pesquisadores, devamos interferir na discussão pública, demarcando o que é certo e o que é errado. O que devemos é ostentar o fato na cena pública massivamente: dar à sociedade civil, da qual nós mesmos fazemos parte, as ferramentas para que ela própria possa construir o seu pensamento”.

* Coordenado pela professora Heloísa Starling, do Departamento de História da Fafich, o Projeto República tem como principal foco o ­estudo da temática do republicanismo e o período histórico republicano brasileiro. De forma ampla, dedica-se a investigar o percurso da história das ideias e dos conceitos no Brasil.

Ewerton Martins Ribeiro