Meu nome é Raul
Homem trans chega à UFMG com expectativas ‘como a de qualquer outro estudante’, mas não vai se furtar ao debate sobre questões de gênero
“Este vai ser um ano diferente, para entrar na História.” Curta, mas recheada de significado, a frase chamou a atenção na conversa com Raul Capistrano, 34 anos, calouro do curso de filosofia, que chega à UFMG pronto para usar o direito recém-regulamentado de os transexuais usarem seus nomes sociais na Universidade. Um ano diferente, portanto, para sua vida pessoal, para outros estudantes trans e para a instituição.
Raul tem frequentado o campus Pampulha como ativista em eventos promovidos, por exemplo, pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (NUH), da Fafich. “Tenho vindo com hora para chegar e para sair, ainda não estou convencido de que esse espaço é realmente nosso. O ambiente ainda pode ser hostil”, afirma.
Representante dos homens trans no comitê estadual de saúde LGBT, ele atua no universo das questões de gênero há poucos anos – só muito recentemente, decidiu investir nas mudanças do corpo. Raul tinha 29 anos quando, ao assistir na TV ao depoimento de um transexual americano, descobriu o poder dos hormônios e de outras intervenções físicas. “Tinha trabalho, renda, amigos, mas não era feliz”, ele revela. “Além disso, enquanto pude me vestir no trabalho de maneira informal, juvenil, foi mais fácil. Mas não me via de gravata, muito menos usando roupas femininas formais”, revela. Acomodou-se no emprego de programador júnior porque não se interessava por profissões marcadas por figuras masculinas e femininas bem definidas.
Quando vieram as mudanças no corpo, a felicidade era tanta que ele não pensou nos danos colaterais, que logo apareceram, principalmente sob a forma de estranhamento por parte de vizinhos e colegas. “Tive apoio da família, mas a maioria das pessoas trans não tem essa sorte”, comenta Raul, que cresceu em Contagem, onde ainda vive. Nem esse suporte, porém, encorajou-o a trabalhar fora de casa, e assim passou alguns anos recluso, dedicando-se ao artesanato. Tinha receio da rua, de precisar explicar em uma blitz a discrepância entre sua aparência e os dados dos documentos.
Recuperar o tempo
Aprovado na UFMG depois de passar por um cursinho pré-Enem exclusivo para pessoas trans, ele chega com pretensões simples. “Espero fazer um curso como qualquer outra pessoa. A prioridade é estudar filosofia, não estarei lá apenas para falar sobre gênero”, diz Raul, que não vê a hora de começar a ler, como estudante, autores aos quais já se dedica nas horas livres. Quer recuperar o tempo perdido e, assim que possível, trabalhar como monitor e professor do ensino básico.
Raul Capistrano sabe, todavia, que seu lado ativista continuará sendo requisitado. E certamente não vai se furtar a frequentar as frentes de debate, num país em que a transexualidade, como ele lembra, ainda é considerada patologia, o “transtorno de identidade de gênero”. O professor do Departamento de Psicologia Marco Aurélio Prado, coordenador do NUH, comemora a chegada de Raul Capistrano à Universidade. “Ele é figura fundamental, porque tem atuação pública qualificada, capacidade de diálogo e de esclarecimento sobre as questões que envolvem as pessoas trans”, elogia.
Namorada de Raul há quase um ano, a assistente social do Cefet-MG Ana Isabel Lemos acrescenta que o ativismo do companheiro é baseado em inteligência e empatia. “Ele sabe falar com os ‘ímpares’ [não militantes], sem agressividade, sobre a importância do acolhimento dos transexuais”, testemunha Ana Isabel, que é estudiosa e também ativista na temática de gênero. Ela diz que Raul ainda é afetado pela exposição constante, mas lida com isso de forma positiva. “Ele sente certo desconforto, mas fica muito animado com a repercussão positiva de ações como as palestras para adolescentes.”
Quando iniciar o curso de filosofia na Fafich, identificado nos processos burocráticos e pelos colegas com o nome que escolheu, Raul – que já obteve na Justiça o direito de portar carteira de identidade que o represente plenamente – dará mais um passo para a superação do que qualifica como “invisibilidade” e “desumanização” das pessoas trans. “Não importa mais saber por que as pessoas são transexuais, importa agora que os direitos dessas pessoas sejam reconhecidos”, afirma Raul Capistrano.