'Trabalho doméstico no Brasil é herança escravocrata', diz professor da UFMG
Em entrevista à Rádio UFMG Educativa, pesquisador analisa as origens da ocupação e as relações desenvolvidas com empregadores
O Brasil é um dos países que mais empregam trabalhadores domésticos. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2018, 6,2 milhões de pessoas desempenhavam tarefas domésticas sob remuneração. Esse ofício abrange atividades como as de diaristas, babás, jardineiros, cuidadores e caseiros. Desse universo, 5,7 milhões, ou seja, 92%, são mulheres, das quais 3,9 milhões, negras.
Para discutir questões relacionadas ao serviço doméstico no Brasil, o programa Conexões, da Rádio UFMG Educativa, entrevistou o professor Cristiano Rodrigues, do Departamento de Ciência Política da Fafich. “No Brasil, pessoas escravizadas, principalmente mulheres, também trabalhavam dentro das casas dos senhores, com atividades relacionadas ao cuidado. Com o fim da escravidão, sem qualquer tipo de política de inserção dessas pessoas no mercado de trabalho, o que ficou disponível para a população negra foram as atividades informais ou a continuidade do trabalho doméstico”, explica.
Rodrigues chamou a atenção para o fato de que é comum, no Brasil, que famílias de classe média contratem os serviços de empregadas domésticas. “Existe, no país, uma divisão equivocada entre o trabalho braçal e o intelectual, em que o primeiro é extremamente depreciado. Assim, as ocupações relacionadas ao cuidado e à limpeza da casa são extremamente desvalorizadas do ponto de vista da remuneração e do reconhecimento social”, pontua o professor.
A desvalorização do trabalho doméstico, segundo o professor Cristiano Rodrigues, é observada em episódios como a mobilização contrária à Emenda Constitucional 72, que ficou conhecida como PEC das domésticas, aprovada em 2012. A emenda estendeu os direitos trabalhistas aos profissionais do trabalho doméstico. “Entre a consolidação das leis trabalhistas e a ampliação desses direitos para as empregadas domésticas, existe uma lacuna de quase 70 anos, o que é muito revelador do desprestígio social dessa atividade profissional. A revolta de certa parcela da população com a extensão desses direitos demonstra uma indisposição em assegurar um respeito mínimo à atividade exercida por essas profissionais”, analisa Rodrigues.
Durante a entrevista ao Conexões, o professor Cristiano Rodrigues também falou sobre características das relações entre as empregadas domésticas e os patrões. O professor problematizou o uso da aproximação afetiva para se referir a elas. “Quando dizem que a empregada é ‘quase da família’, há um apagamento dessa distinção entre a atividade profissional e a afetividade social entre aquelas pessoas. Isso muitas vezes coopera para maior exploração desses indivíduos, porque eles são tirados do lugar de trabalhadores", explica Rodrigues, que também critica a utilização de eufemismos para referir-se à profissão: “Ao falar da empregada doméstica como ‘secretária do lar’, ou ‘a moça que trabalha lá em casa’, há um apagamento de sua atividade profissional e até de seu próprio nome, o que contribui ainda mais para a exploração de seus serviços”.
Para Cristiano Rodrigues, as questões que envolvem o estabelecimento e consolidação do trabalho doméstico no Brasil estão relacionadas a uma profunda desigualdade social. “É uma atividade marcada pela continuidade de uma exploração hierárquica que ocorre desde o período da escravidão. Só vamos ter uma sociedade realmente igualitária quando essas ocupações, que existem somente para garantir o conforto da classe média, deixarem de existir, e esses trabalhadores forem integrados ao mercado de trabalho de forma mais respeitosa e justa”, defende o professor.
Caso Miguel
No início deste mês, Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, filho da empregada doméstica Mirtes Renata Santana de Souza, morreu ao cair do nono andar de um edifício de luxo no Recife, após a mãe descer para passear com o cachorro da família e deixar o menino aos cuidados da patroa, Sari Gaspar Côrte Real.
Segundo o professor do DCP, o caso reitera o desrespeito pela humanidade das pessoas que exercem a ocupação. “Além de os patrões terem mantido a empregada doméstica trabalhando, mesmo durante o período de isolamento social, no dia da morte, a vida da criança foi trocada pela dos cachorros, porque a patroa não teve paciência para cuidar do garoto. Isso mostra, além de negligência, a desumanização das pessoas que estão nas classes mais mais vulneráveis dessa rígida hierarquia que marca a sociedade brasileira”, conclui Cristiano Rodrigues.