Tese investiga papel dos intelectuais no debate sobre a descolonização africana
Pesquisadora da Fafich analisou atuação da revista 'Présence africaine', apoiada por nomes como Gide, Camus e Sartre
Quando desenvolvia seus estudos de mestrado, com foco no movimento Négritude, dos anos 1920 e 30 – de valorização da identidade cultural africana, criado por estudantes das colônias que estudavam na França –, Raissa Brescia dos Reis tomou conhecimento da revista Présence africaine, que seria lançada em 1947, em Paris, e circula ainda hoje. No doutorado que está prestes a concluir, no Programa de Pós-graduação em História, ela empreendeu pesquisa sobre a influência da publicação no processo de independência dos países da África Ocidental Francesa – como Senegal, Mali, Costa do Marfim e Benin –, na década de 60, e nas discussões que opunham o pan-africanismo aos projetos nacionais, entre outros aspectos. O estudo é tema de reportagem publicada na edição 2020 do Boletim UFMG.
A uma abordagem da Présence africaine que trata seus integrantes como vanguarda revolucionária, heróis indiscutíveis da independência, predominante na historiografia francesa, Raissa preferiu focar na complexidade de seu objeto de estudo. “A independência não era o único horizonte daqueles intelectuais, que tampouco eram colaboracionistas. A revista estava inserida em uma série de debates. Havia a defesa da independência e a de outros caminhos, como uma autonomia que mantivesse vínculos fortes com a França”, diz a pesquisadora.
A revista foi criada por intelectuais de países oeste-africanos de expressão francesa, com o apoio de nomes da metrópole como André Gide, Albert Camus e Jean Paul Sartre. O objetivo, segundo Raissa Brescia, era valorizar a participação das populações negras na construção da modernidade e, no pós-segunda guerra, questionar o tradicional lugar de civilizadora do mundo ocupado pela Europa.
Bastidores
Para ter acesso à coleção completa de Présence africaine, que não está disponível no Brasil, a doutoranda passou um ano na França, em 2016 – ela pesquisa sob cotutela da UFMG e da Université Bordeaux Montaigne, orientada pela professora Vanicléia Santos, da Fafich, e pelo professor Michel Cahen. Frequentou sobretudo a Biblioteca Nacional da França e o Institut Mémoires de l’Édition Contemporaine.
“Além dos exemplares da revista, fui atrás de documentos que me possibilitaram ampliar os estudos para a história intelectual, que preza redes de sociabilidade, regras e relações no campo de poder, aspectos culturais e organização da sociedade”, conta Raissa Brescia. “E me concentrei em arquivos que me mostraram, por exemplo, os bastidores da construção editorial na Présence, os processos de escolha dos artigos para publicação. Esse material ajudou a revelar as formas de lidar com a ideia de intelectual negro de expressão francesa.”
Entre outras descobertas, a pesquisadora constatou que o grupo que orbitava a revista não se enquadrava na clássica definição de Pierre Bourdieu, que teorizou sobre as relações dos intelectuais com as estruturas de poder. Para Bourdieu, diz Raissa, os intelectuais integram a elite, mas numa posição de “dominado entre os dominantes”, o que lhes abre espaço para criticar a classe dominante. Essa definição tem base na separação dos mundos político, cultural e religioso.
“Para os africanos, essa separação não era clara na década de 50. A elite intelectual transformou-se na elite política dos novos países. O senegalês Alioune Diop, criador e diretor da revista, chegou a participar do governo francês. Leópold Sedar Senghor foi deputado no Senegal, integrou a Assembleia Constituinte de 1946, na metrópole, e foi o primeiro presidente de seu país – permaneceria 20 anos no poder”, exemplifica Raissa Brescia. Ela acrescenta que alguns dos intelectuais-políticos defendiam uma via africana do socialismo, modelo de governo que respondesse às necessidades peculiares do continente. “Para isso, era preciso, segundo eles, maleabilizar a democracia”, interpreta.
Nacional versus pan-africano
No esforço de construção das novas nações, na medida em que passou a lidar com intelectuais-politicos, a revista deu origem à Sociedade Africana de Cultura (SAC). A publicação se via em meio a disputas como da liderança do pan-africanismo, que punha em lados diferentes países como Argélia, ex-colônia francesa, e Gana, de colonização inglesa.
“Muitas campanhas foram apoiadas na ideia de unidade africana, e esse ideal não se realizou. Ainda assim, o pan-africanismo não deixou de organizar o pensamento político no oeste africano e de atuar como força mobilizadora de movimentos sociais, como o estudantil”, diz a pesquisadora. “A revista chegou a elaborar uma cartilha para o pós-independência, equilibrando os interesses locais e regionais e a ideia de unidade africana.”
Segundo Raissa Brescia, Présence africaine atuou sobretudo na articulação intelectual, mas esteve sempre próxima de outros registros, como a política institucionalizada. A publicação representou a dimensão do diálogo no interior do pan-africanismo. “Présence cumpria a missão de ‘imaginar’ o continente, criar formas, atores e cenários. Foi um ponto de encontro e conflitos, um espaço muito emblemático para a compreensão da riqueza do debate intelectual e político”, conclui a pesquisadora.