Prae surgiu para lidar com novo perfil de estudante, mais complexo e diverso
Em evento nesta terça-feira, gestores fizeram um balanço da trajetória de 10 anos da Pró-reitoria, responsável pelas políticas de acolhimento e permanência da UFMG

A Pró-reitoria de Assuntos Estudantis (Prae) celebrou seu aniversário de dez anos em uma cerimônia realizada na tarde desta terça-feira, 3, no auditório da Reitoria. A pró-reitora Licinia Maria Correa divide essa década em três fases – que, de certa forma, ajudam a contar o que foram esses últimos dez anos para a conjuntura brasileira.
A primeira fase seria o ciclo 2014-2018, período da implantação e do “enraizamento” da Pró-reitoria em meio aos trâmites pragmáticos da vida universitária estudantil. “Aquele foi um período de acontecimentos fortes: tínhamos vivido as Jornadas de Junho [em 2013], seguidas das ocupações estudantis [em 2016]. Foram movimentos que mostraram a capilaridade do movimento estudantil e sua capacidade de articular pautas de seu interesse”, lembrou a pró-reitora. No período, a Prae também acompanhou o avanço do processo de adesão da UFMG à Lei de Cotas, marco na transformação recente vivida pelo perfil médio do universitário brasileiro, na direção de uma amostragem mais condizente com a pluralidade social e étnica que compõe a nação.
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A segunda fase seria o ciclo 2019-2022, período em que a Prae, “no auge de um governo fascista e atravessada por uma pandemia”, deu início, segundo Licínia, a um processo de necessária reorganização interna. Data desse período a elaboração do conceito de “permanência estudantil”, hoje corrente nos discursos estudantis de base e nos discursos educacionais do âmbito institucional.
Nos dois primeiros governos Lula (2003-2006 e 2007-2010), foi realizado um inédito trabalho de ampliação do número de instituições e de vagas no ensino superior brasileiro. O eixo desse processo foi o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). Se naquele primeiro momento o foco estava no acesso, a partir do segundo ciclo o que entrava em jogo era a oferta de efetivas condições para que os estudantes não apenas entrassem, mas efetivamente pudessem, com qualidade de vida, continuar na Universidade até terminarem seus estudos.
A terceira fase é o ciclo iniciado em 2023, que chegou com a promessa de consolidação da atuação da Pró-reitoria no âmbito da estrutura universitária. Para compreender essa fase, é preciso entender que ainda hoje existem competências institucionais que, desenhadas nos documentos de criação da Pró-reitoria (Resoluções 05 e 11, de 2014), ainda não foram totalmente assumidas por ela, na lógica processual da Administração Central.
Para que essa consolidação avance, a Prae se organizou em três diretorias, cada uma voltada para uma dessas competências a serem assumidas em sua plenitude: Assistência Estudantil, Apoio a Projetos de Estudantes e Ações Afirmativas. “Os diálogos constantes que mantemos hoje com os movimentos estudantis coletivos são a prova de que tomamos definitivamente parte da luta por equidade e qualidade de vida no ensino superior”, destacou a Licinia Correa, concatenando essa realidade burocrática institucional com a realidade pragmática do dia a dia do órgão, conhecido por ser uma espécie de pró-reitoria dos alunos – ou ao menos a pró-reitoria mais próxima do cotidiano discente.
'Só assistir não basta'
Para Tarcísio Mauro Vago, professor da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional (EEFFTO), primeiro pró-reitor de Assuntos Estudantis (gestões 2014-2018 e 2018-2022) e um dos responsáveis pela criação da Prae, a instância nasceu em razão de uma mudança de filosofia no tocante à assistência estudantil. “A Prae existe porque ‘só assistir’ não basta”, disse Tarcísio. “É preciso assistir, sim, mas também é preciso acolher; é preciso dizer ‘seu lugar é este’; é preciso dizer ‘frua e usufrua’ desta que é uma das maiores universidades públicas deste país. Foi essa a estratégia que levou à criação da Prae”, demarcou.
“Ao mesmo tempo", continuou Tarcísio Vago, "a UFMG criou a Pró-reitoria de Assuntos Estudantis porque os estudantes e as estudantes desta Universidade lutaram para que ela fosse criada”. O pró-reitor destacou que a novidade surgiu, em certa medida, de baixo para cima: “O movimento estudantil vinha lutando há tempos por questões diretamente relacionadas ao seu dia a dia. A criação da Prae foi uma exigência deles, em razão da reconfiguração vivida pelo corpo discente da UFMG, ocorrida em consequência das políticas decisivas realizadas nos governos Lula e Dilma.”
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A reitora Sandra Regina Goulart Almeida lembrou que a Prae foi criada “em um dos momentos mais difíceis da história da universidade pública brasileira”. E acrescentou: "Nós nunca havíamos tido, depois da ditadura, um momento tão triste e difícil para a universidade pública do nosso país. Foi um momento de fortes cortes orçamentários, que impactaram a permanência estudantil. Mas a verdade é que o ataque não foi apenas orçamentário. O que nós sofremos foi, acima de tudo, um ataque simbólico – um ataque à universidade em todos os seus sentidos. Foi nesse momento que a Prae foi construída. Isso tem uma importância muito grande”, disse a reitora. "Não foi pouca coisa. Só o futuro saberá contar o que passamos nesse período. E foi junto, como comunidade, e com os estudantes, que a gente conseguiu chegar hoje a um patamar em que somos respeitados como instituição pública e somos convidados a construir juntos o Brasil em que a gente acredita.”
Tarcísio Vago, ou Tatá, como é chamado carinhosamente por amigos e estudantes, identifica um paradoxo em relação à garantia de direitos no ciclo 2014-2024. "Foi a década em que mais direitos foram perdidos em nosso país. No entanto, foi também a década em que a UFMG mais expandiu e alargou os direitos da sua comunidade. Tivemos as nossas resoluções relacionadas aos Direitos Humanos, à adoção do nome social, à criação de cotas para a pós-graduação, entre outras. Enquanto o país ia perdendo direitos, a Universidade, como que numa mensagem ao país, trabalhava na mão inversa e expandia direitos."
A Prae pelo olhar estudantil
Uma das falas mais marcantes do evento foi a do estudante Gabriel Lopo, que coordenou (gestão 2018-2020) o Diretório Central de Estudantes (DCE) em alguns dos anos mais dramáticos da história da Universidade. “A Prae surge para ensinar a UFMG a lidar com esse novo perfil de estudante que entrou na Universidade. O projeto da universidade brasileira era um projeto para as elites. A universidade nunca foi pensada exatamente para o filho do trabalhador, o filho da trabalhadora. Era um espaço para formar os filhos dos letrados da elite e da classe média alta das capitais e dos grandes centros urbanos. Então, quando esse perfil começa a mudar, a universidade descobre que não está preparada para lidar com as questões que surgem. Este é o momento em que surgem os problemas de evasão, de saúde mental, de convivência – problemas que a universidade, de certa forma, nem sabia que existiam”, destacou Lopo.

“Em verdade, a assistência estudantil existe há muitos anos na UFMG. Mas, mesmo que a Universidade tenha sido pioneira no assunto, quando surge esse novo perfil de estudante, o cenário muda completamente. Agora o que está em jogo não é mais apenas a questão do ‘jovem carente’. Agora, o que se tem é um perfil diverso, que vai passar por questões relacionadas ao território, à sexualidade, à faixa etária, às relações étnico-raciais”, disse Lopo, em alusão às pessoas negras, indígenas, quilombolas, campesinas, LGBTQIAPN+ e com deficiência que também passaram a exigir seu direito de permanência na UFMG. “A UFMG foi aprendendo. Agora, é importante notar que esse aprendizado não ocorreu e ocorre de cima para baixo; é de baixo para cima. A Prae é resultado de um processo histórico de aprender a lidar com esses novos sujeitos”, disse o ativista do movimento estudantil, ele mesmo um desses estudantes que só puderam permanecer na Universidade graças às estruturas de assistência.
Por fim, Lopo ainda mencionou os conflitos entre movimentos estudantis e a administração da Universidade ao longo de sua história. Contudo, para o ex-coordenador do DCE, essa é uma relação que, ao fim, é benéfica para todos. “Os conflitos sempre vão existir. Eles fazem parte da vida da Universidade. Enquanto a Universidade existir, vai haver conflito com a comunidade estudantil. Os conflitos vêm para nos ensinar. Para ensinar a hora de negociar, a hora de cobrar, a hora de reconhecer”, pontuou.
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Exemplo para o país
“Celebrar os dez anos da Prae é celebrar o momento em que a sociedade brasileira passou a perceber esse tema – que a gente, de modo mais amplo, tem chamado de ‘assuntos estudantis’ – como um tema de fundamental importância para as universidades e para o país”, comentou Sandro Ferreira, coordenador nacional do Fórum de Pró-reitores de Assuntos Estudantis (Fonaprace) e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Sandro Ferreira destacou a importância da evolução do tema nos últimos dez anos na UFMG e em outras universidades federais, destacando o papel pioneiro encenado pela federal mineira nas discussões entre instituições. “Parece um jargão simples dizer que ‘não existe universidade sem estudantes’, mas hoje o que é possível dizer é que ‘não existe universidade sem políticas de permanência estudantil’. O próprio processo de constituição dos saberes das universidades depende de um novo público que acessou essas instituições. E esse público, que só chegou à universidade depois de muita luta, é o público que precisa diretamente de políticas de permanência estudantil – que são sim sociais, mas são também simbólicas”, destacou.
Após a mesa de abertura das comemorações (que seguirão nos próximos meses), a professora Rosana Heringer, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ministrou a conferência O desafio de articular a política institucional de permanência estudantil nas universidades públicas, que foi seguida de um debate. Por fim, a Prae encerrou o evento com o lançamento da chamada pública 03/2024, que vai prover recursos financeiros para a realização de atividades de acolhimento aos calouros do primeiro semestre letivo de 2025. As inscrições de projetos poderão ser feitas a partir da próxima segunda-feira, dia 9 de dezembro, e até 10 de janeiro. Detalhes sobre a chamada, assim como a íntegra da conferência de Rosana Heringer, podem ser recuperados no vídeo abaixo, que registra o evento desta terça. O texto da chamada será publicado no site da Prae.
A Prae
A Pró-reitoria de Assuntos Estudantis (Prae) da UFMG foi criada em 11 de novembro de 2014, por meio de resolução complementar do Conselho Universitário. Na ocasião, foi definido que competiria à instância elaborar, coordenar e avaliar projetos de assistência estudantil, de ações afirmativas, de combate ao preconceito e às opressões e de articulação acadêmica com a Fundação Universitária Mendes Pimentel (Fump), entre outras ações. As competências e a estrutura da Prae estão descritas na resolução 11/2014, de 11 de novembro.
Os demais documentos relativos à institucionalidade da Prae, como seu regimento interno e sua política para a permanência de estudantes, podem ser consultados na página da Pró-reitoria. Por meio dela, também é possível conhecer os membros da equipe gestora e do Conselho de Assuntos Estudantis, consultar atas e tomar ciência das atividades que vêm sendo realizadas pelo Fórum de Pró-reitores de Assuntos Estudantis (Fonaprace), cujo próximo encontro nacional, a ser realizado em 2025, deve ocorrer na UFMG.
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