Pesquisa e Inovação

Pesca tradicional reproduz desigualdade de gênero no trabalho

Pesquisa coordenada pela UFMG na Bacia de Campos, no Rio de Janeiro, revela que as mulheres ganham menos que os homens e desempenham atividades secundárias na cadeia produtiva

Lagoa Feia, município de São Francisco de Itabapoana, RJ
Pescadora em Lagoa Feia, no município de São Francisco de Itabapoana (RJ)Foto: Lucas Lins

Apesar de representarem praticamente a metade da força de trabalho no universo da pesca no Brasil (49%, segundo levantamento de 2023 do Ministério de Pesca e Aquicultura), as mulheres exercem papéis secundários na cadeia produtiva, têm direitos suprimidos e ganham menos que os homens, o que segue o padrão de desigualdade de gênero observado em outros setores da economia.

A conclusão consta de estudo sobre o capital social gerado pela atividade pesqueira na Bacia de Campos, no Rio de Janeiro, desenvolvido pelos professores Silvio Salej Higgins e Jorge Alexandre Neves, da Fafich, e publicado na edição deste mês da revista Marine Policy.  

Intitulado Capital social e renda das mulheres na pesca tradicional: evidências da Bacia de Campos (estado do RJ), o estudo considerou o conceito minimalista de capital social. “Isso significa que o maior ganho nos rendimentos dos pescadores e pescadoras se baseia na ideia de apropriação individual das vantagens estruturais trazidas pelo capital social que, nesse caso, é a participação nas organizações artesanais, como as colônias e associações comunitárias de pescadores. Os rendimentos dos associados são até 20% maiores em relação ao que ganham os não associados”, explica Silvio Higgins.

Organizações centenárias
Às colônias e às associações comunitárias de pescadores cabe a tarefa de garantir direitos e promover a melhoria da infraestrutura local e o bem-estar social dos trabalhadores. Trata-se de organizações centenárias surgidas entre 1919 e 1924, quando a Marinha brasileira estimulou a criação de 800 colônias de pescadores, com mais de 100 mil inscritos. O objetivo era integrar as comunidades locais ao governo central, para consolidar um projeto de ocupação do território costeiro.

Pontal da Barra de Macaé, que também integra a Bacia de Campos, no Rio de Janeiro
Pontal da Barra de Macaé, que integra a Bacia de Campos, no Rio de Janeiro Foto: Lucas Lins

Desde então, as colônias também ficaram responsáveis pela certificação profissional dos pescadores. O registro profissional é o principal requisito para acesso ao seguro defeso, pago pelo Ministério do Trabalho aos pescadores nos períodos em que a atividade pesqueira é proibida, em respeito ao ciclo reprodutivo de algumas espécies (Lei 11.959/2009).

As associações comunitárias de pescadores, bem mais recentes (foram legalmente instituídas em 2002), não têm, diferentemente das colônias, atribuições legais, mas atuam no âmbito mais amplo da vida comunitária em termos de promoção de atividades para o bem-estar dos pescadores e melhoria da infraestrutura.

Cultura ancestral
Um componente cultural arraigado nas colônias explica a maior valorização profissional dos homens em relação às mulheres, cujos rendimentos oriundos da atividade pesqueira são até 83% menores. “Essa discrepância decorre do legado ancestral no mundo da pesca, segundo o qual cabe aos homens a tarefa de se lançar ao mar, rios ou lagos para a captura de peixes, enquanto para as mulheres ficam reservadas as tarefas consideradas de apoio, como filetar e descascar o pescado ou coletar mariscos em lagos e mangues”, pontua o professor. Essa cultura, inclusive, se refletiu, durante muito tempo, na legislação nacional – recentemente atualizada –, que reconhecia apenas o registro profissional de pesca dos profissionais que participavam da captura do pescado, embarcados.

Os dados analisados pelos professores da Fafich são oriundos da pesquisa censitária Pescarte, realizada de 2014 a 2016 por um projeto de educação ambiental criado para mitigar os impactos causados pela extração de petróleo e gás na Bacia de Campos. O projeto tem gestão compartilhada da Petrobras e da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) e supervisão do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A UFMG participa da iniciativa por meio dos professores Sílvio Higgins e Jorge Alexandre Neves. Também integram a equipe e são coautores do artigo estudantes da pós-graduação em Sociologia da UFMG e da Universidade Federal do Norte Fluminense (UENF).

Pescador Adonis do Quilombo da Rasa, em Armação de Búzios, RJ
Pescador Adonis, do Quilombo da Rasa, em Armação de Búzios, RJ Foto: Gabriel Grego 

“Nosso estudo identificou que a taxa de participação dos homens nas colônias de pesca da Bacia de Campos é de 65,4%, entre os 2.523 trabalhadores do sexo masculino, enquanto a participação feminina é de 49,6%, entre as 556 mulheres que exercem a atividade pesqueira. A taxa de participação das mulheres é 25% menor que a dos homens”, compara Silvio Higgins.

Os pesquisadores também se detiveram nas diferenças de rendimento entre trabalhadores e trabalhadoras. “Quando comparamos a massa dos rendimentos do trabalho entre homens e mulheres, no universo do censo Pescarte, encontramos 33% da participação masculina na faixa de até um salário-mínimo legal, enquanto nessa mesma faixa as mulheres têm apenas 15% de participação. E na faixa de até dois salários-mínimos, a diferença da divisão sexual do trabalho é ainda mais impactante, com participação seis vezes maior dos homens (13%), frente a 2% de participação das mulheres.”

Higgins acrescenta que as mulheres participam de apenas um terço dos rendimentos totais da pesca e ganham, em média, 83% menos do que um homem. "E o trabalho de filetador-descascador, desempenhado majoritariamente por mulheres, proporciona uma renda, em média, 54,5 % inferior à de outras posições ocupacionais na indústria pesqueira”, revela.

Perfil
O estudo também aborda o perfil das trabalhadoras da pesca artesanal: são mulheres predominantemente pretas ou pardas, vivem em áreas rurais, têm baixa escolaridade e estão sujeitas à insegurança alimentar. Elas trabalham em situações informais e precárias, com exposição prolongada ao sol, em ambientes úmidos e sem boas condições ergonômicas.

Na avaliação do professor Sílvio Higgins, a ausência de dados confiáveis sobre o peso relativo da pesca artesanal na economia dos municípios brasileiros dificulta estimar a sua participação na economia nacional. “Isso é decorrente da condição de ofício informal, em que inexistem protocolos unificados em âmbito nacional para a coleta de dados de captura nos cais e portos. Por isso, o censo PEA Pescarte na Bacia de Campos foi o mais exaustivo possível e conseguiu reunir as 17 subcategorias de ofícios dentro da cadeia produtiva da pesca artesanal e desvelar que a realidade dos rendimentos do trabalho da pesca está no nível da sobrevivência básica”, conclui o docente.

Teresa Sanches