Novo governo marca retorno do Brasil aos fóruns internacionais, projeta professor do DCP
Para Dawisson Belém Lopes, questão ambiental faz do país um ‘player incontornável’
A 27ª conferência do clima da Organização das Nações Unidas (COP 27) está em curso, em Sharm El Sheikh, no Egito. O evento, que começou no último domingo, 6, uma semana após o segundo turno das eleições presidenciais brasileiras, vai receber, na semana que vem, o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, do PT. Na opinião de Dawisson Belém Lopes, professor de política internacional comparada no Departamento de Ciência Política (DCP) da UFMG, o convite a Lula, feito pelo presidente egípcio Abdel Fatah al-Sissi, indica “uma reviravolta e um retorno do Brasil aos fóruns internacionais e à postura universalista”.
“O Brasil não tem inimigos no plano internacional e assim deve ser guiada a sua política externa. Deve ser uma política que explore os potenciais das relações internacionais no seu máximo, e o país buscará, a partir de 2023, dar uma orientação multilateral, por meio da qual a resolução dos problemas globais deve ser colegiada e envolver o maior número de atores, para que, com isso, haja mais legitimidade nas decisões”, defende o especialista em relações internacionais da UFMG.
A resposta dos agentes internacionais, rapidamente reconhecendo o novo presidente eleito, na noite do dia do pleito, segundo Dawisson Lopes, foi uma reação orquestrada, motivada por uma percepção internacional do Brasil como uma trincheira para a continuidade da democracia. Para o professor, após a derrota de Trump, Bolsonaro tornou-se uma das principais vozes da extrema-direita em todo o mundo, o que explica a proporção que o interesse pela eleição do último dia 30 de outubro alcançou em âmbito internacional.
No Reino Unido, onde hoje atua como pesquisador visitante no The Latin American Centre, da Universidade de Oxford, o professor Dawisson Lopes tem conversado, nas últimas semanas, com veículos jornalísticos de todo o mundo, entre os quais, BBC, The Guardian, The New York Times e Deutsche Welle, uma forte evidência do interesse da comunidade internacional pelos desdobramentos do processo eleitoral brasileiro. “O que se repete, nas questões internacionais, é uma preocupação com a polarização. A comunidade internacional vê que o Brasil saiu das urnas como um país dividido ao meio e quer entender como Lula conseguirá governar um país nessa situação”, afirma ele, nesta entrevista ao Portal UFMG.
As principais potências e democracias reagiram quase que imediatamente à vitória de Lula. As manifestações pelo resultado e até a visita do presidente argentino, Alberto Fernández, no dia seguinte ao pleito demonstram que o mundo acompanhou atentamente a disputa. O que explica esse cenário, em que diversas autoridades se manifestaram de forma tão rápida e contundente sobre a eleição brasileira?
Foi uma reação quase em uníssono: mais de 200 autoridades internacionais se manifestaram, cumprimentando Lula por sua vitória. Eu atribuo esse movimento concertado, quase orquestrado, à importância que a eleição brasileira ganhou ao longo de 2022 e, principalmente, ao longo dos últimos meses. É fato que havia uma percepção da comunidade internacional, uma percepção majoritária, de que o Brasil era uma das trincheiras da luta pela democracia ou da luta contra a ultradireita global. Especialmente após a derrota de Donald Trump, nos Estados Unidos, Jair Bolsonaro tornou-se um dos principais líderes desse movimento de ultradireita no mundo, e eu acredito que isso, por si só, explica o fato de os olhos do mundo terem se voltado para o Brasil. De resto, há também um movimento, muito alimentado pelo bolsonarismo, de contestar as eleições, os procedimentos eleitorais e, no caso específico brasileiro, a urna eletrônica. Houve até uma convocação feita pelo presidente Jair Bolsonaro de embaixadores de vários países do mundo para denunciar, ainda que sem apresentar provas, o sistema eleitoral brasileiro e questionar a credibilidade da urna eletrônica. Aquilo foi o estopim para um contramovimento, uma reação que foi evidentemente organizada no nível das embaixadas em Brasília, para que houvesse o pronto reconhecimento do resultado das eleições e a pronta manifestação dos países na noite de domingo, 30 de outubro. Não foi um movimento espontâneo: foi algo concertado, organizado justamente para mostrar para o Brasil como o mundo pensava.
Dois dias após a confirmação da vitória, o presidente eleito foi formalmente convidado pelo presidente do Egito para participar da cúpula climática global COP 27, evento que reúne mais de 90 chefes de Estado. Esse convite pode ser interpretado como uma sinalização de que o mundo espera que a pauta climática e ambiental seja um eixo prioritário da nova política externa brasileira?
Fundamentalmente, o Brasil, especialmente com o primeiro chanceler do governo Bolsonaro, Ernesto Araújo, colocou-se numa condição de pária global. Uma condição autoatribuída, diga-se de passagem: foi com gosto que o Brasil abraçou essa personalidade internacional, especialmente na primeira metade do mandato de Jair Bolsonaro. Nesse sentido, avalio que a presença do Lula na COP 27, que se dá por meio de convite oficial da organização do evento, feito pelo presidente do Egito, sinaliza uma reviravolta e um retorno do Brasil aos fóruns internacionais e à postura universalista. Ou seja: o Brasil não tem inimigos no plano internacional, e assim deve ser guiada a sua política externa.
Evidentemente, o tema que conecta o mundo hoje é o meio ambiente. Ele afeta a todos: os pequenos e os grandes estados, ricos e pobres. É um tema que efetivamente coloca todos no mesmo barco, e o Brasil tem credenciais muito importantes nessa área temática: o país é campeão mundial de biodiversidade, tem recursos florestais e hídricos abundantes, é produtor global de alimentos de primeiro nível. Isso tudo sem falar do conhecimento acumulado pelas nossas populações indígenas originárias e aspectos como o potencial energético: o Brasil é um dos maiores produtores de energia por mecanismos limpos de todo o mundo. Todo esse somatório de fatores transforma o Brasil em um player incontornável: o país estará em todas as discussões relevantes nessa área temática do meio ambiente. Lula sabe disso, já sinalizou que aceita o desafio e que o Brasil está de volta às relações exteriores.
Especialistas têm a opinião de que as relações exteriores do Brasil se apequenaram no governo Bolsonaro, com o país demonstrando alinhamento internacional a agentes, e não a Estados, e também a pautas reacionárias, encampadas por países não democráticos, como Arábia Saudita e Paquistão, conhecidos por ataques aos direitos humanos, especialmente das mulheres. Que direcionamento podemos esperar da política externa a partir de 2023?
Houve, de fato, um estreitamento do horizonte da política externa brasileira. Ao longo desses quase quatro anos de governo, Bolsonaro buscou sistematicamente uma aproximação do Brasil com países cujos líderes pensavam parecido com ele. Veja, por exemplo, que o Brasil esteve muito próximo dos Estados Unidos, durante os anos 2019 e 2020, mas não porque os países tivessem uma concordância no nível do Estado, mas porque os chefes de Estado, Donald Trump, nos Estados Unidos, e Bolsonaro, no Brasil, comungavam certos valores e visões de mundo. Quando Trump se foi, a relação entre os países se deteriorou, no âmbito bilateral.
No caso dos países europeus, isso também foi flagrante: o Brasil diminuiu a sua interação com os europeus, que são nossos parceiros tradicionalíssimos, desde sempre. Acho que esse é um momento de reconstrução e de buscar devolver a Europa ao status e à importância que sempre teve no nosso mapa diplomático. O Brasil acabou se aproximando de países com os quais não tinha muita tradição de engajamento. Eu costumo citar, como evidência anedótica, o fato de que o Brasil, mais especificamente Bolsonaro, tenha viajado com frequência inédita para o Golfo Pérsico. É realmente curioso, porque a pauta bilateral com países como Emirados Árabes Unidos, Catar, Bahrein, Kuwait não justificaria tanto investimento. Mas ali naturalmente havia outros interesses, sobretudo no campo dos valores, uma aproximação muito baseada em uma visão de mundo fundamentalmente religiosa que não está historicamente em consonância com o Brasil, que, como eu citei antes, sempre teve atuação universalista. Então, eu vejo como uma oportunidade boa para o Brasil recobrar um curso de ação que é multilateral e universalista: esse é o Brasil que eu reconheço historicamente e que deve voltar a partir de 2023.
O ideal então seria adotar uma postura mais neutra?
Eu não sei se neutra, mas certamente uma postura que busque o que tem sido chamado na literatura de não alinhamento ativo. O Brasil não deve se alinhar incondicionalmente ou a priori a nenhum país do mundo. O Brasil deve buscar as melhores oportunidades, as melhores parcerias, a partir de um quadro amplo de valores, e isso é determinado pelo direito internacional público, por um senso de moralidade internacional. Não deve haver alinhamento incondicional a ninguém. Se o Brasil souber navegar essas relações internacionais complexas, difíceis, sempre em busca do seu autointeresse, creio que isso tenderá a ser compreendido como uma ação limpa, uma ação que se espera de um país: a busca do seu autointeresse. O Brasil não deve hesitar em buscar ativamente os objetivos nacionais. A neutralidade, stricto sensu, talvez não: a neutralidade acarreta uma suspensão dos valores e até um não envolvimento frontal, um não engajamento. O Brasil deve, sim, se engajar nas questões internacionais, sempre em busca do próprio interesse.