Institucional

Judith Butler defende 'igualdade radical' em conferência de seminário sobre gênero

Obra da filósofa norte-americana inspirou programação do seminário internacional 'Quem tem medo do gênero ?', que se encerra hoje na UFMG

Judith Butler em conferência remota no seminário 'Quem tem medo do gênero?'
Judith Butler em conferência remota no seminário 'Quem tem medo do gênero?'; na mesa, o professor Marco Prado, um dos coordenadores do seminárioImagem: Reprodução YouTube

Expoente dos estudos de gênero, a filósofa norte-americana Judith Butler ministrou, nesta quinta-feira, dia 16, uma das mais aguardadas conferências do seminário internacional Quem tem medo do gênero?. Autora do livro homônimo que inspirou a programação do evento, ela centrou seu argumento na concepção de que as paixões políticas são essenciais para desafiar a opressão sistêmica, promover a justiça social e resistir às paixões fascistas que ameaçam comunidades vulneráveis e instituições democráticas. 

Em participação por videoconferência, Judith Butler também explorou o conceito de “igualdade radical”, que, segundo ela, extrapola a mera igualdade formal ou legal e encoraja esforços para corrigir as disparidades estruturais que afetam diferentes grupos. “É preciso politizar questões de natureza pessoal, como gênero e sexualidade, reconhecer a opressão sistêmica e as diferentes formas como ela se manifesta”, disse.

Butler mencionou a noção de “imaginário” como elemento crucial na formação das paixões políticas e na resistência às normas sociais. “Ao politizar o imaginário, podemos transformar paixões pessoais em ações políticas que contestam a injustiça e promovem a mudança”, argumentou. Ainda segundo ela, persistem no mundo — atualizadas e dotadas de atributos novos — concepções políticas ligadas ao ideal fascista, que vigoram contra comunidades vulneráveis, como as de imigrantes, minorias religiosas e outras. “São paixões que se alimentam do medo e da insegurança, levam à desumanização e à marginalização de grupos específicos, privando-os de seus direitos e dignidade”, definiu.

Injustiça legitimada
As referidas “paixões fascistas”, nas palavras da filósofa, têm uma dimensão moral que serve para justificar a prática de injustiças. Ela observou que essas paixões são caracterizadas por uma forma de moralidade que legitima a violência e a opressão em nome de um suposto bem maior, e então cria-se "um ambiente em que a injustiça é vista como necessária ou inevitável”. 

Na visão da conferencista, a chamada "ideologia de gênero" é frequentemente apontada por movimentos reacionários e fascistas como uma ameaça moral, "para justificar a restauração de hierarquias patriarcais e a exclusão". “Cria-se um pânico moral para angariar apoio popular a projetos políticos autoritários e excludentes. É uma forma de sadismo disfarçado de moralidade, em que a destruição e a opressão são vistas como necessárias para manter a ordem”, refletiu.

Judith Butler ainda destacou a ameaça gerada pelo neofascismo, movimento que, segundo ela, se aproveita das estruturas democráticas para, em um segundo momento, destruí-las. “Esse é o caso de políticos que, eleitos democraticamente, tentam romper com a democracia”, exemplificou. 

Participantes da mesa
Uma das mesas teve como tema políticas antigênero e possíveis resistênciasFoto: Jebs Lima | UFMG

Batalha política
Antes da conferência de Judith Butler, outros especialistas nos estudos de gênero reuniram-se na mesa O estado das políticas antigênero no mundo e resistências possíveis, que teve lugar no auditório da Reitoria. Um dos participantes, o sociólogo francês Eric Fassin, professor da Université Paris VIII, mencionou “as declarações absurdas que Donald Trump faz sobre mulheres” como emblemáticas da “necessidade de celebrar a agressividade e a energia masculina potente”. “Homens como ele não têm medo da gente. A gente é que tem medo, e temos boas razões para isso, pois eles são poderosos", argumentou.

Para Eric Fassin, os partidários “antigênero” devem ser levados a sério porque, além de contestar o movimento, combatem os estudos de gênero, "já que estão cientes de que esses estudos legitimam e facilitam as transformações sociais”. “Sua batalha política é baseada no desejo de desigualdade, e temos que tentar ser tão inteligentes quanto os fascistas”, completou o professor.

Na sequência, a pesquisadora Adriana Zaharijević, da Universidade de Belgrado, na Sérvia, apresentou um panorama dos estudos de gênero na região dos Balcãs e as diferentes conjunturas dos países que integraram a Iugoslávia. “Na Croácia, berço dos movimentos de gênero, na Eslovênia e na Macedônia houve uma profusão de campanhas e de fortes movimentos políticos e sociais, enquanto na Bósnia e Herzegovina, em Kosovo e em Montenegro, as mobilizações protoantigênero prevaleceram”, comparou. De acordo com Zaharijević, a política “antigênero” ramificou-se naquela região, mesclando-se ao discurso antifeminista. “Esse movimento penetrou nos espectros políticos do centro e também na esquerda", disse a professora da Universidade de Belgrado.

Da mesma mesa, participaram Clare Hemmings, da London School of Economics, e Verónica Gago, da Universidade de Buenos Aires. 

Homenagem a um legado
A abertura do seminário Quem tem medo do gênero? ocorreu na noite da última quarta-feira, dia 15,  no auditório da Reitoria, com as presenças da reitora Sandra Regina Goulart Almeida, da diretora do Ieat, Patrícia Kauark, dos coordenadores da iniciativa, Marco Aurélio Prado e Marcelo Cattoni, e de Sonia Corrêa, do Observatório de Sexualidade e Política (SPW) da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia).

Um dos destaques da atividade inaugural foi a intervenção Fazer festa com o perigo, da Plataforma Beijo, grupo de teatro formado por pessoas trans que homenageia o legado de Cintura Fina, importante personagem LGBT+ que viveu em Belo Horizonte da década de 1950 à de 1970. Na capital mineira, ela foi cozinheira, faxineira, profissional do sexo e gari e se destacou na mídia por sua personalidade combativa e pelo uso da navalha para se defender de agressões. Cintura Fina dá nome ao Acervo LGBT+ da UFMG, o primeiro institucionalizado por uma universidade brasileira.

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Espetáculo da Plataforma Beijo em homenagem a Cintura Fina, importante personagem LGBT+ de BHFoto: Raphaella Dias | UFMG

O evento prossegue nesta sexta-feira, dia 17, com a mesa-redonda As políticas antigênero no Brasil: alvos, efeitos e resistências, que reunirá, também no auditório da Reitoria, Denise Carrera (USP), Keila Simpson (Antra), Anna Uziel (Uerj) e Rodrigo Borba (UFRJ). A coordenação será de Isabela Kalil, do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.  

Efeitos da política antigênero e a disputa dos direitos humanos é o tema da última mesa do seminário. Dela participarão Juan Vaggione (Universidade Nacional de Córdoba), Sonia Corrêa (Sexuality Policy Watch), Marcelo Cattoni (UFMG), Ronilso Pacheco (Iser), Graeme Reid, especialista independenteU das Nações Unidas em orientação sexual e identidade de gênero), sob a coordenação do professor Marco Aurélio Máximo Prado, da UFMG.

Mais informações sobre o evento estão disponíveis no site do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBTQIA+ da UFMG.

Matheus Espíndola