Arte e Cultura

Jacyntho Brandão lança livro de contos centrado na ‘erótica da errância’

Mesclando sensualidade e humor, obra de emérito da Fale trabalha a forma como celebração da alta literatura

'Ode à errância', de Jacyntho Lins Brandão
'Ode à errância', de Jacyntho Lins Brandão Imagem: Editora Patuá

Neste sábado, 24, a partir das 10h, o professor emérito da Faculdade de Letras (Fale) da UFMG Jacyntho Lins Brandão lança o livro de contos Ode à errância (Editora Patuá) na Academia Mineira de Letras (AML), em Belo Horizonte, instituição que ele preside desde o ano passado. 

O lançamento integra a “sessão mineira” dos festejos do aniversário de 13 anos da Patuá, editora independente de São Paulo. Além de Jacyntho, vários outros autores de Minas Gerais publicados pela editora, de veteranos a estreantes, vão apresentar ou reapresentar seus livros no evento. Também há, entre eles, egressos das graduações e pós-graduações da UFMG.

No momento, já são mais de dez autores confirmados. Com romances, participam Ádlei Carvalho, com Céu de luz Marina, Amélia Machado, com Feito água de rio, Geanneti Tavares Salomon, com Nó corrediço, e Guilherme de Marchi, com O visitante. Com livros de poesia, estarão presentes Girlene Verly, com Dança de samambaias, Márcia Leão, com Sobre andar em chão de estrelas, Paula Quinaud, com Anas (poesia e outras urgências), e Rosane de Castro, com Mundana. Com livros de contos, por fim, participam Luís Giffoni, com A vida, a morte e outros penduricalhos, Rafael F. Carvalho, com BR-381, e Renan Menicucci, com Berenice: o futuro é afeminado.

“A festa em BH vai ser linda”, prevê o editor e publisher Eduardo Lacerda. “Fazemos livros lindos e de excelentes escritores e escritoras, mas achamos muito importante que a literatura possa promover o encontro entre pessoas”, comenta.

Ode à errância, ode a Eros
Ode à errância reúne 14 contos organizados em torno de um mote comum: a relação entre os erros, a errância, e Eros, a erótica. A rigor, o díptico estabelecido por essas duas ideias é mais que mote: a relação entre o erro e o prazer se realiza como um método de escrita digressiva. Trata-se, ao cabo, do modo próprio de narrar e ficcionalizar encontrado pelo autor para produzir uma obra efetivamente singular, condizente com a sua estatura intelectual, em um período mais consolidado de sua carreira.

A rigor, esse mote-modo já é indicado pela epígrafe com que Jacyntho abre o volume. Nela, um trecho do Manifesto da Poesia Pau-Brasil de Oswald de Andrade é subvertido, e o termo “erros” da famigerada expressão do modernista vira “Eros”, já dando a entender o que vem ali pela frente: “a contribuição milionária de todos os Eros”.

A partir daí, o narrador de cada conto vai descrevendo a história que tem para contar “errando” por entre cenas e ideias, dúvidas e lembranças, como se fosse um flâneur dos sentidos, em vez de flâneur dos espaços. Ele e seus leitores vão descobrindo o seu prazer possível (e haja prazer, sensualidade, volúpia). Com efeito, é uma relação que perpassa todo o livro, concebido como uma espécie de gozo distendido, no sentido (não só) psicanalítico do termo.

Jacyntho com um de seus livros, em mesa da última edição do Festival de Verão UFMG
Jacyntho com um de seus livros de literatura, em mesa da última edição do Festival de Verão UFMG Foto: Foca Lisboa | UFMG

No primeiro conto, denominado justamente Dos contos (que também funciona como uma introdução ao volume), o narrador explica e mitifica três aspectos: a sua razão para escrever contos (a insônia), o método de sua escrita (a errância prazerosa) e o tipo de conto de sua predileção (os longos, posto que capazes de cobrir uma insônia inteira – seja de quem escreve, seja de quem lê). Algumas das histórias do livro vão, de fato, cobrir, sozinhas, algumas dezenas de páginas – é o caso de Meia e dúzia, Potranca trácia e [Fedra], com mais de 40 páginas cada.

Em Meia e dúzia, conto de estilo e mote machadianos, um idoso de memória inconfiável repassa a sua vida como estratégia para tentar entender o presente, e uma tal Iphigênia povoa suas lembranças à moda de uma Capitu revolucionária – a Capitu mal lembrada por Bentinho, entre as brumas confusas de sua ora traiçoeira, ora interessada memória. Aqui, sob o falso tema da importância que o corpo vai ganhando para o homem quanto mais se vai avançando na idade, tem-se um conto que se escreve à moda dos desdobramentos sem-fim, em que assuntos se filiam indefinidamente em assuntos, ao mesmo tempo em que ideias fixas são retomadas e postas a circular.

Em maior e menor grau, o tom e o mote machadianos vão aparecer em várias outras histórias, como as citadas Potranca trácia (que lembra Brás Cubas e suas memórias) e [Fedra] (história que, em diálogo regular com o leitor, se organiza pelas idas e vindas do abecedário).

Contudo, o avançar do livro, em seu “estilo virgulado” (palavra de um dos narradores), também remeterá a pelo menos outras duas referências. De um lado, tem-se por todo o livro a lembrança do melhor Raduan Nassar, em Um copo de cólera, em sua recusa pelo ponto final, o que faz o curso das histórias ganhar o ritmo singular desejado pelo autor. De outro, no campo da forma, nota-se algo que evoca Guimarães Rosa – especificamente, no que concerne à necessidade que todo grande escritor tem de praticamente inventar uma linguagem, ou ao menos criar um modo próprio e singular de escrever, para transpassar a neblinosa fronteira da alta literatura.

Em razão de tudo isso, o livro de Jacyntho entrega contos que são, ao mesmo tempo, exercícios de virtuose ficcional e sintática – exercícios que, de tão virtuosos, quase parecem assintáticos, em certos momentos. É como diz um determinado narrador: “Dou pausas estranhas, sei bem, em lugares inadequados, todavia não é, vou dizer, por alguma falta de ar, apenas pela necessidade de pensar, o que me contrai a glote, como há, em casos semelhantes, quem contraia as sobrancelhas ou torça a boca.” 

Cinco dos quatorze contos do livro são nomeados como Clepsidra (termo dado a um antigo artefato de se medir o tempo, movido a água e gravidade) e numerados de um a cinco. Alusivos a um hilário “Professor X”, especialista em literatura oral e muito dado às mais constrangedoras cenas do nosso mundo acadêmico, esses textos funcionam como espécie de estribilho para o livro, um refrão que se repete de tempos em tempos, como que encenando pequenas variações em torno de um mote comum.

Em parte, esses textos aludem a situações vividas pelo personagem, em suas palestras tomadas pelos preâmbulos e circunlóquios (o "Professor X" literalmente nunca alcança os temas de que haveria de falar, apesar de sempre seguir falando indefinidamente). Em outra parte, o conjunto alude às histórias da oralidade que teriam sido recolhidas e coligidas pelo professor, em um mise en abyme de duplos que faz lembrar, aqui, as experimentações que Jacyntho já fizera há quase três décadas, no romance O fosso de Babel (Nova Fronteira, 1997). São as voltas que, errante, a vida dá.

Parceria com as independentes
Ode à errância é o segundo livro que Jacyntho lança pela casa editorial comandada por Eduardo Lacerda; em 2023, a editora tirara do prelo Harsíese, obra que acabaria vencendo o Prêmio Literário Biblioteca Nacional daquele ano, na categoria poesia. Na obra, Jacyntho reúne o melhor de sua produção poética recente – que, assim como o livro de agora, converge para o mote da memória e da necessidade de se dar vazão a ela. Tanto Ode à errância quanto Harsíese demarcam um movimento mais recente do escritor na direção de dar mais vazão à publicação da sua obra ficcional, na esteira de seu longo histórico de publicações focadas nos estudos literários e nas traduções de textos clássicos.

Jacyntho: obra ficcional ganhou mais relevo nos últimos anos
Jacyntho: obra ficcional ganhou relevo nos últimos anos Foto: Foca Lisboa | UFMG

Helenista consagrado, Jacyntho é autor de diversos ensaios teóricos sobre a literatura, como Antiga musa: Arqueologia da ficção (Relicário, 2015), e de várias traduções feitas de clássicos das línguas mais antigas, como o acádio. Um exemplo nessa seara é o best-seller Ele que o abismo viu: Epopeia de Gilgámesh (Autêntica, 2017), em que Jacyntho conta a versão mais canônica do mito de Gilgámesh, atribuída a Sin-léqi-unnínni (séc. XIII a.C.). Nesse campo das traduções, sua publicação mais recente é o poema babilônico Epopeia da criação, também conhecido como Enūma Eliš (Autêntica, 2022). 

O tema desse livro vai reverberar, de forma algo invertida, em um dos melhores contos de Ode à errância, denominado Canção de fim de mundo. O conto é o único do volume que já havia sido publicado – na coletânea 20 contos sobre a pandemia de 2020 (Autêntica, 2020), organizada por Rogério Faria Tavares, antecessor de Jacyntho na presidência da AML. Fazendo troça com a própria biografia e tendo como inspiração o imprevisto advento da covid-19, Jacyntho conta a fúnebre e, ao mesmo tempo, divertidíssima história dos integrantes de uma pernóstica academia literária de uma pequena cidade do interior, em suas politicagens comezinhas. Outro elemento de lastro biográfico que aparecerá nos contos de Ode à errância é o ambiente residencial religioso, como o dos seminários. Foi em ambiente semelhante a esse, como hóspede familiar, que o autor viveu parte de sua infância, após se mudar de Rio Espera para Belo Horizonte.

O trabalho de edição
Ex-aluna da Faculdade de Letras da UFMG, a poeta e editora Amanda Vital atuou, na Patuá, no trabalho de edição de Ode à errância. Em conversa com o Portal UFMG, ela celebrou a oportunidade de editar o trabalho de um professor de uma Universidade em que, pouco tempo atrás, ela mesma estudava. “O professor Jacyntho deixou a mim e ao Alessandro Romio [designer responsável pela capa e pela diagramação] bastante à vontade durante o nosso trabalho. Quando a comunicação é boa e todo o trabalho é respeitado sem hierarquizações (que é como gostamos de trabalhar), o projeto não se desvia da intenção inicial do autor e de seus objetivos com o livro”, destacou a assistente editorial.

Amanda fala de como o projeto gráfico, produzido para o livro em diálogo com o autor e sua complexa proposta, encorpou o significado de seu mote central. “Romio trabalhou a capa com um viés mais contemporâneo e ligado ao movimento, às múltiplas direções, à errância, propriamente dita, já que os contos são muito diversificados. O projeto fez mais sentido assim, e todas as nossas sugestões foram bem acatadas. O projeto também estava super bem organizado e arrematado [quando o autor o enviou para a editora], anulando quaisquer empecilhos que pudéssemos encontrar no meio do caminho”, ela conta, ansiosa por ver o resultado chegar às mãos dos leitores da cidade em que estudou.

Livro: Ode à errância
Autor: Jacyntho Lins Brandão
Editora: Patuá
R$ 60 / 268 páginas

Outras obras literárias do autor, lançadas mais esparsamente, ao longo de sua carreira
Outras obras literárias do autor lançadas ao longo de sua carreira Foto: Ewerton Martins Ribeiro | UFMG

Ewerton Martins Ribeiro