Pesquisa e Inovação

Erosão constitucional será tratada em série de seminários internacionais

Pesquisadores vão apresentar, ao longo de um ano, suas visões sobre os fenômenos que cercam os ataques à democracia

Sessão do Senado na Polônia:
Sessão do Senado na Polônia: país é cenário da ascensão do iliberalismoWikipedia – CC BY-SA 3.0 pl

Desde a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos, em 2016, foi publicada grande quantidade de artigos e livros que abordam as ameaças à democracia em todo o mundo. Segundo o entendimento de muitos pesquisadores, essas publicações são importantes, mas limitadas, na medida em que foram produzidas no calor dos acontecimentos que se desenrolavam em diversos países e não dão conta de análises e projeções mais consistentes. Com o passar do tempo, formou-se uma rede internacional de acadêmicos que têm estudado o fenômeno sob perspectivas diversas.

Parcela significativa desses pesquisadores estará reunida, a partir de 19 de maio, na Série de seminários sobre constitucionalismo e democracia, promovida pelo Programa de Pós-graduação em Direito da UFMG e pelo grupo de pesquisa DigitalConst, também vinculado à Universidade, que estuda a influência das novas tecnologias no constitucionalismo e no direito. Até junho de 2022, ao ritmo de um evento por mês, sempre on-line, será possível conhecer as ideias de estudiosos da Itália, Austrália, Alemanha, dos Estados Unidos, de Singapura, do Chile, do Reino Unido e do Brasil, entre outros países.

“As bases de dados internacionais sobre qualidade da democracia mostram que, pelo menos desde 2010, Estados com graus distintos de consolidação democrática têm perdido qualidade em vários quesitos. Ocorre em países de contextos bastante diversos, como Índia, Filipinas, Hungria, Polônia e Brasil”, afirma o professor Emilio Peluso Neder Meyer, da Faculdade de Direito, que organiza os seminários juntamente com Tímea Drinóczi, da Universidade de Pécs, na Hungria, que inicia temporada como docente visitante na UFMG.

Emílio Meyer:
Emílio Meyer: qualidade da democracia tem caído em vários quesitosArquivo pessoal

De acordo com os organizadores, o mundo abriga autocracias, golpes de Estado e “processos sutis de deterioração democrática que evoluem juntamente com o uso de práticas autoritárias comuns e renovadas”. Esses processos incluem agressões ao jornalismo profissional e à liberdade acadêmica e de expressão, elegia do anti-intelectualismo, restrições de direitos de minorias e direitos socioeconômicos por meio de políticas neoliberais, ataques a instituições constitucionais, entre outras formas de cerceamento.

Degradação progressiva
Emilio Meyer explica que o Brasil está incluído na lista de países em que a democracia está em risco porque, desde 2014, vive processo de degradação progressiva de instituições e valores constitucionais. “A democracia veio se consolidando a partir da Constituição promulgada em 1988, mas nos últimos anos houve uma série de sinais eloquentes contra essa tendência, e o quadro se agravou no governo atual. A transição do regime autoritário para o democrático requer planejamento adequado e o cumprimento de certas condições, como a responsabilização dos agentes públicos por atos na ditadura, reformas institucionais e definição clara das novas relações das Forças Armadas e das polícias com a política e com a população. Não foi o que ocorreu no Brasil”, afirma o professor, que coordena o Centro de Estudos sobre Justiça de Transição da UFMG.

Meyer acrescenta que persistem no Brasil problemas como o despreparo do Poder Judiciário para lidar com a imensa desigualdade social, a antiga lógica de segurança nacional usada para intimidar adversários políticos e “a polarização excessiva, que faz da eliminação de opositores uma ideia plausível”. “No Brasil e em outros Estados do Sul global, como Colômbia e África do Sul, a imensa desigualdade é utilizada para a adoção de práticas autoritárias. Um exemplo é a ideia da compra de vacinas por empresas privadas. São medidas que aprofundam essa desigualdade”, afirma Emilio Meyer, que vai lançar em agosto o livro Constitutional erosion in Brazil (Hart Publishing). 

Os seminários vão tratar de temas como iliberalismo constitucional, papel dos partidos políticos, situações em regiões como a Ásia e a Europa, questões específicas como as de gênero e tecnologias e identidade constitucional. Essa última abordagem está relacionada às características variadas dos ordenamentos jurídicos nacionais, que é preciso conhecer para medir com réguas distintas os graus de ataque à democracia.

Emilio Meyer destaca a preocupação da organização dos seminários com a diversidade dos participantes no que se refere a aspectos como origem geográfica, etnia, gênero e experiência acadêmica. Os seminários, sempre em língua inglesa, serão transmitidos pelo Zoom e pelo YouTube. Todas as informações sobre a iniciativa estão sendo publicadas no site do Programa de Pós-graduação em Direito.

Tímea
Tímea Drinóczi: compreensão das mudanças constitucionais nocivasAcervo pessoal

Iliberalismo
A húngara Tímea Drinóczi estuda movimentos que têm ganhado corpo no mundo, principalmente na Europa, em países como Hungria e Polônia. Ela afirma que a comunidade acadêmica deve estar atenta a fenômenos como o iliberalismo, a decadência da democracia e a emergência do populismo. “Temos que trabalhar juntos para compreender por que e como se dá a deterioração, contribuir para a conceituação das mudanças constitucionais e procurar soluções”, diz a professora, que tem publicado livros e artigos sobre o tema.

Tímea defende que só na Hungria e na Polônia ocorre o constitucionalismo iliberal, mas acrescenta que suas sementes são notadas também em outros países da União Europeia, como a República Checa e a Romênia. “Esperamos que nossa pesquisa [ela trabalha com a professora Agnieska Bien-Kacała, da Universidade Nicolas Kopernicus, na Polônia] ajude no “reconhecimento dos primeiros sinais do iliberalismo em outros lugares, a tempo de prevenir o desmantelamento do Estado Constitucional e de construir novos mecanismos de proteção”.

Na palestra Constitucionalismo iliberal como agenda de pesquisa, no seminário de junho próximo, Tímea Drinóczi vai abordar a resistência da literatura acadêmica a admitir qualquer outro tipo de constitucionalismo e democracia que não seja liberal. “O fenômeno que emerge diante de nossos olhos, na Hungria e na Polônia, não se enquadra nas categorias e na terminologia conhecidas, e pretendo apresentar argumentos a favor de termos como constitucionalismo iliberal e democracia iliberal. Espero que mais pesquisadores, mesmo aqueles ainda refratários à nossa terminologia, dialoguem conosco, inclusive durante a série de seminários, para que possamos enriquecer o debate e nossa compreensão das nocivas mudanças constitucionais.”

Richard Albert
Richard Albert: regras violadas e direitos erodidosAcervo pessoal

‘Avaliação esperançosa’
O professor Richard Albert, da Universidade do Texas em Austin (EUA), reforça que as constituições estão enfrentando múltiplos desafios críticos: “suas regras são violadas, os direitos, erodidos, e suas fundações democráticas estão sendo atacadas de todos os lados”, ele sentencia. Isso acontece justamente quando as pessoas procuram nas constituições ajuda para a solução dos grandes problemas da humanidade, como as mudanças climáticas, a exclusão histórica, a desigualdade e os conflitos sociais. “A boa notícia é que os acadêmicos têm dedicado suas energias à mobilização e ao redirecionamento dos aparatos constitucionais para defender os princípios da democracia constitucional”, diz Albert, que, assim como Tímea Drinóczi, conversou com a reportagem por e-mail.

Ao professor canadense caberá a abertura da série promovida pela UFMG, com a palestra O futuro da mudança constitucional. Ele anuncia que vai partir de um problema: nenhuma parte de uma constituição é mais importante que os procedimentos utilizados para alterá-la, mas esses procedimentos são suscetíveis a manipulação, aplicação distorcida e violação explícita. “O resultado é que eles podem servir para aperfeiçoar ou fragilizar a democracia, para expandir ou reduzir direitos”, sentencia Albert.

Isso leva a uma pergunta que, segundo ele, todos devem se fazer: é possível construir uma Carta capaz de proteger a integridade de seus procedimentos de mudança constitucional de forma a assegurar os resultados democráticos? “A resposta é provavelmente negativa”, afirma Richard Albert. “Mas não sou pessimista, ao contrário. Minha avaliação do futuro do constitucionalismo é esperançosa, em grande parte porque há movimentos promissores de atenção à forma como as constituições estão se alterando e, tão importante quanto, a quem está promovendo essas mudanças.”   

Juliano Benvindo:
Juliano Benvindo: recurso à teoria dos jogosAcervo pessoal

O debate vinculado à exposição de Albert vai ser coordenado pelo professor Juliano Zaiden Benvindo, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Ele ressalta que o pesquisador canadense, com quem mantém intensa troca acadêmica, é possivelmente o maior especialista no mundo em mudanças constitucionais formais, com teses muito impactantes apresentadas de modo muito didático. “Uma abordagem importante do Richard, ainda que suscite algumas controvérsias, é a do desmembramento constitucional, provocado por emendas tão radicais que alterariam a essência de uma constituição”, diz Benvindo, que atua sobretudo no campo do direito constitucional comparado.

O professor da UnB antecipa que, em sua participação no seminário deste mês, pretende oferecer um olhar menos normativo sobre as teses de Albert. “Tenho aplicado ao tema das mudanças constitucionais recursos como os da teoria dos jogos e ferramentas mais típicas da ciência política, que valorizam a atuação e o comportamento dos diversos atores, sobretudo os políticos”, diz Benvindo. “Meu pressuposto é o de que a constituição é um centro de coordenação de interesses coletivos, o que significa que aspectos como as estratégias de negociação política são tão importantes quanto as abordagens jurídica e filosófica", pondera.

Itamar Rigueira Jr.