Psicólogos refletem sobre como lidar, na análise, com o trauma do abuso sexual
Análises foram reunidas em livro organizado por projeto da Fafich direcionado a crianças e adolescentes
Psicólogos e psicanalistas enfrentam dificuldades diversas quando lidam com casos de abuso sexual: a criança demora a criar confiança no profissional, a família e a Justiça exigem atestados antes da hora, e, principalmente, é extremamente árduo diagnosticar uma violência que deixou suas marcas numa psique em formação, atropelada pela sexualidade adulta. Essas são algumas das questões que guiam o esforço do Projeto Cavas (Crianças e Adolescentes Vítimas de Abuso Sexual), vinculado ao Departamento de Psicologia da UFMG.
O mais recente resultado do trabalho do grupo é o livro Ecos do silêncio: reverberações do traumatismo sexual (Ed. Blucher, 2017), que reúne pesquisadores da UFMG e de outras instituições brasileiras, da Universidade de Buenos Aires (UBA), parceira do Cavas, e da Pontifícia Universidade Católica do Peru.
“A obra responde à necessidade de abordar os diversos pactos de silêncio que se impõem em casos de abuso sexual. Esses casos, de incesto em sua grande maioria, são, de muitas formas, abafados pela família e pela comunidade, e mesmo a rede de enfrentamento à violência sexual infantojuvenil se vê muitas vezes de mãos atadas, porque não é simples comprovar o abuso”, explica a professora Cassandra Pereira França, da Fafich, coordenadora do Cavas e organizadora de Ecos do silêncio, tema de matéria publicada na edição 2001 do Boletim UFMG.
Cassandra lembra ainda que o assunto é permeado por questões éticas complexas, como a gravidez na puberdade ou o risco da identificação com o agressor sexual e o desencadeamento de práticas abusivas com crianças menores.
Outra situação muito comum é a da criança que se vê obrigada a ceder à chantagem do abusador. “A criança não se vê como vítima, sente-se culpada pelo ato incestuoso e aceita o pacto de silêncio”, diz a pesquisadora, que em um dos capítulos do livro estuda um caso da literatura recente em que uma trama familiar real colaborava para que ninguém suspeitasse do avô, responsável pelo abuso.
Rastros no discurso do adulto
Textos como os dos psicanalistas Flávio Ferraz, livre docente pela USP, e Eugênio Dal Molin lembram ao leitor que o traumatismo sexual é da ordem do indizível, não tem concretude para sustentar uma narrativa como ocorre com um acidente de trânsito ou um incêndio. Isso explica por que, geralmente, esse trauma só vai ser recuperado pelo sujeito na vida adulta. “Por isso mesmo, é muito importante que os psicólogos desenvolvam uma escuta sensível aos possíveis rastros, no discurso do paciente adulto, daqueles abusos e maus-tratos sofridos na infância”, diz Cassandra França.
Susana Toporosi e Adriana Noemí Franco, da Universidade de Buenos Aires, também sublinham, em seus textos, a necessidade de uma escuta acurada e da interpretação de indícios que podem ser encontrados, durante o processo de análise de crianças, por meio de seus desenhos e dramatizações. Quando o foco da análise são os adolescentes, “resta-nos observar as reverberações do abuso sexual principalmente sobre os vínculos sociais e de erotização do corpo”, explica a organizadora de Ecos do silêncio.
A exploração do que fica subentendido nas brincadeiras do jovem paciente durante a sessão de análise é tema do capítulo assinado pelo psicólogo Heitor Amâncio de Moraes Castro, ex-integrante da equipe do Cavas. “O brincar de uma criança traumatizada é uma atividade singular, que guarda distinções significativas com o jogo de outras crianças, mais saudáveis, em outros contextos”, escreve.
Em outros capítulos, os autores revelam como o estupro sofrido por uma mãe pode afetar a sexualidade da filha, como a figura materna pode ser responsável pela erotização precoce do corpo da menina e como, pela força da compulsão à repetição, uma criança abusada em sua família inicial pode manifestar para os pais adotivos a expectativa de que eles pratiquem os mesmos atos abusivos que marcaram sua primeira infância. “Muitas famílias adotivas, porque não foram preparadas para essas manifestações compulsivas das experiências traumáticas, acabam reagindo negativamente, devolvendo as crianças adotadas às instituições em que viviam”, diz Cassandra França.
O projeto
O Projeto Cavas/UFMG, implantado oficialmente em 2005, desenvolve atividades de clínica, pesquisa e capacitação técnica de psicólogos, psicanalistas e assistentes sociais, entre outros profissionais. Suas pesquisas acadêmicas são desenvolvidas no Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFMG – oito dissertações foram concluídas, e três teses estão em fase de conclusão.
Ecos do silêncio segue-se aos livros Perversão: as engrenagens da violência sexual infantojuvenil (Imago, 2010) e Tramas da perversão: violência sexual intrafamiliar (Escuta, 2014), também produzidos pelo Cavas. “Temos capacitado muita gente em cursos presenciais, mas é preciso levar o resultado de nossas pesquisas a profissionais de todo o Brasil, e os livros cumprem também essa função”, afirma Cassandra França. Desde 2013, o grupo promoveu três encontros com pesquisadores latino-americanos.
Livro: Ecos do silêncio: reverberações do traumatismo sexual
Organizado por Cassandra Pereira França
Editora Blucher
246 páginas / R$ 60