Boaventura: 'Precisamos construir utopias para enfrentar o neoliberalismo'
Em conferência na Cres 2018, intelectual português citou o caso brasileiro, cujas universidades sofrem com cortes de recursos
É preciso dar continuidade e aprofundar o movimento de 1918 protagonizado pela comunidade acadêmica de Córdoba, defendeu o professor Boaventura de Sousa Santos, da Universidade de Coimbra, em sua exposição na Cres 2018, realizada na última segunda-feira, 11. Na palestra, o intelectual português indicou os pontos do Manifesto da Reforma Universitária que permanecem atuais um século após sua publicação.
Para o professor, o ensino superior como direito universal, premissa do Manifesto de Córdoba, é princípio que precisa ser defendido. Ele pregou a necessidade de aprofundar as diretrizes do Manifesto de Córdoba, assim como a radicalização das bandeiras do movimento de maio de 1968. “O inimigo que temos pela frente, o neoliberalismo, fundamentado na especulação e no capital financeiro sem fronteiras, é muito poderoso. Precisamos construir utopias coletivas para termos força para lutar”, afirmou.
Drama no Brasil
O professor avalia que o Manifesto de Córdoba tem contribuições positivas, como as ideias da extensão e da relevância social. No entanto, essas referências estão ameaçadas, inclusive no Brasil, com os cortes nos orçamentos das universidades praticados pelos governos nacionais. “O caso brasileiro é dramático. Há um movimento em curso para destruir a universidade pública", antevê.
Boaventura citou ainda o caso sul-africano, em que estudantes negros têm ingressado nas universidades após o apartheid, mas os professores continuam sendo os mesmos homens brancos da mesma sociedade excludente do passado. Santos alertou ainda sobre a luta das mulheres chilenas contra o assédio e o abuso sexual.
Segundo o professor, esse é o contexto no qual estão inseridos os ataques às universidades. “Sobretudo as públicas, porque estamos passando por um ciclo neoliberal, o domínio do capital financeiro que não tem a responsabilidade social do capitalismo produtivo", comparou o intelectual. Segundo o professor português, o neoliberalismo é especialmente refratário às universidades, em especial as públicas, porque são o local do dissenso, e o dissenso não interessa a ele. “Em 1918 e, sobretudo, em 1968, acreditávamos em uma alternativa, tínhamos uma utopia, o socialismo. Hoje, o capitalismo não parece ter inimigo à altura."
Capitalismo universitário
Boaventura explicou que o capitalismo produtivo percebia a universidade como local para criar competências e habilidades para o mercado. Mas, nos dias de hoje, o capital financeiro pretende transformar as universidades em parte do mercado. “Nesse caso, a universidade é governada como uma empresa. Ela deixa de formar para o mercado e se torna, ela mesma, parte do mercado. Estudos já indicavam que a educação e a saúde são os investimentos mais rentáveis de nosso tempo. Precisamos nos manter alertas e combativos".
Para o professor, a Reforma de Córdoba inspirou avanços que acabaram incorporados às constituições nacionais, como o princípio de que a educação é um direito e as ações afirmativas. Mas o crescimento do mercado de educação põe esses direitos em risco. “A universidade como negócio não é universidade”, disse.
Boaventura afirmou ainda que a internacionalização solidária não agrada ao capitalismo. “O capitalismo internacional não quer a solidariedade. Ele é hostil à universidade, a um projeto de educação libertadora.” O movimento de interiorização do capital também foi criticado por Boaventura. Para ele, o ingresso do grande capital internacional tem provocado a expulsão de camponeses, das pessoas do campo, de quilombolas e de povos indígenas.
Santos também criticou a prática de ranquear universidades. “O que o capitalismo quer não é uma universidade no capitalismo, mas a universidade do capitalismo. Por isso, surgem os rankings para ordenar as universidades. E pensemos no que está fora no ranking das universidades: a relação com os estudantes, a extensão, o trabalho social. O que é essencial para socializar a comunidade universitária está fora dos rankings internacionais. Não sou contra as avaliações, mas elas precisam contabilizar as potências de toda a universidade. Precisamos recorrer a Córdoba para lutar contra esse novo inimigo, que é muito poderoso", pregou.
Novos aliados
Para evitar a destruição das universidades, Boaventura propõe valorizar os conhecimentos não acadêmicos. “Há muito conhecimento fabuloso fora da universidade, mas a universidade não se descolonizou. Ela precisa fazer a sua autocrítica.”
Outro movimento necessário, na avaliação do intelectual, é a atenção às classes populares, historicamente renegadas pelas universidades. Para Boaventura, havia, no passado, apoio das elites às universidades públicas que formavam os filhos das classes mais abastadas. No entanto, diz o professor, as elites não confiam mais nessas instituições, e seus filhos estudam fora do país. “A universidade tem de buscar novos aliados. As elites não apoiam as universidades, e as camadas populares ainda não se sentem contempladas pelas instituições universitárias. Precisamos alterar essa realidade", defendeu. A saída, segundo Boaventura, é intensificar as ações de extensão universitária. “Não é levar a universidade para fora, é trazer o conhecimento popular para dentro das instituições. A extensão vai renovar a universidade", acredita o professor.
A Rádio UFMG Educativa também registrou a conferência de Boaventura Sousa Santos.